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Das aldeias ao cinema: os discursos sobre as sociedades indígenas no dispositivo cinematográfico

  • por

Vívian de Nazareth Santos Carvalho
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará


VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
                

Comédia, drama, romance, pornochanchada, documentário, horror. É possível encontrar histórias sobre sociedades indígenas em todas essas vertentes cinematográficas. A primeira representação de um índio nas telas do cinema aconteceu no início do século XX, no filme O Guarani, lançado em 1911 e dirigido por Salvattore Lazzaro (SILVA, 2007). A partir de então, o dispositivo cinematográfico passou a apresentar diferentes discursos sobre os povos originários do Brasil.

Na pornochanchada há, por exemplo, o filme Iracema, a virgem dos lábios de mel (ano: 1979. Direção: Carlos Coimbra). O longa conta a história do romance entre a mulher Tabajara Iracema (interpretada pela atriz Helena Ramos) e o português Martim (interpretado pelo ator Tony Correia). Explorar a sensualidade do corpo completamente nu da indígena é o mote principal do filme.

 Iracema, uma transa amazônica (ano: 1981. Direção: Jorge Bodanzky) é um drama que retrata a vida de outra Iracema (interpretada pela atriz Edna de Cássia), uma menina indígena que vai morar em Belém e precisa se prostituir para sobreviver. No cinema de horror é comum a irrupção de discursos sobre a antropofagia indígena. A invenção de um “índio canibal” e assassino é a estratégia utilizada para provocar medo nos espectadores. Como é o exemplo dos filmes Canibal Holocausto (ano: 1980. Direção: Ruggero Deodato) e Canibais (ano: 2015. Direção: Eli Roth).  

Há também as películas que criticam os discursos coloniais que constituem as redes memórias ocidentais sobre os povos indígenas. Exemplos são as obras Como Era Gostoso o Meu Francês (ano: 1971. Direção: Nelson Pereira dos Santos) e Terra Vermelha (ano: 2008. Direção: Marco Bechis). O primeiro, uma comédia dramática, utiliza a ironia para denunciar a colonialidade do poder que, como explica Mignolo (2018), subalterniza o conhecimento e a cultura dos povos colonizados com o objetivo de impor um conhecimento global, unificado e eurocêntrico.

Em Como Era Gostoso o Meu Francês a antropofagia do povo Tupinambá é o tema principal. A obra tem o cuidado em mostrar que a prática antropofágica não é dissociada de sentido, pelo ao contrário, faz parte do contexto histórico e cultural dessa sociedade. Já Terra Vermelha, também tece fortes críticas à colonialidade, apresentando a história de luta do povo Guarani Kaiowá para recuperar suas terras.

Encaramos os discursos presentes nesses filmes como um “nó em uma rede”, que retomam, atualizam, reforçam, criticam e modificam enunciados historicamente construídos sobre os povos indígenas. Sem perder de vista que a irrupção e o silenciamento de discursos nessas obras cinematográficas estão atrelados à movências históricas.  

Minha tese de Doutorado, orientada pela professora Dra. Ivânia Neves, analisa a presença indígena no dispositivo cinematográfico, tendo como materialidade os filmes de ficção que apresentam, como sinopse principal, temáticas indígenas. Compreendo que uma pesquisa foucaultiana não pode ser apartada da história. É a história que oferece as condições de irrupção e apagamento dos discursos, que estão inseridos em um sistema de regularidades e dispersões (FOUCAULT, 2008).

Em análises preliminares, observamos que na década de 1970, há o surgimento de filmes que defendem a decolonização do pensamento e a valorização das culturas indígenas. É o Cinema Novo que, em plena Ditadura Militar (!), trazia para as telas obras que ironizavam o eurocentrismo e propunham, como diria Oswald de Andrade (1990), uma “descolombização” da América e uma “descabralização” do Brasil. Como exemplo desta linha cinematográfica temos Como Era Gostoso o Meu Francês e Pindorama (ano: 1971. Direção: Arnaldo Jabor).

Pensar o cinema a partir da noção de dispositivo é compreender que ele está investido de poder. Um poder que aciona diferentes táticas e procedimentos para alcançar objetivos estratégicos (FOUCAULT, 2014). Por isso, observamos o dispositivo cinematográfico para indagar: Quais são as relações de poder que estão em jogo? (que são múltiplas e móveis). Como o cinema torna possível essas espécies de discursos e, inversamente, como esses discursos lhe servem de suporte? Como essas relações de poder presentes no dispositivo cinematográfico (relações que se estabelecem por meio do enquadramento, figurino, diálogos, corpo, roteiro, trilha sonora) se vinculam umas às outras? Como diz Foucault (2014, p.109) “é justamente no discurso que vêm se articular poder e saber”.

Estudar sociedades indígenas é estar disposto à descolonização do pensamento. É preciso problematizar a colonialidade do poder e refletir na e a partir das margens desta colonialidade (MIGNOLO, 2018). Compreender como pensamentos outros se irrompem nas fissuras do sistema mundial colonial/moderno (MIGNOLO, 2018).
Terra Vermelha é a luta dos Guarani Kaiowá pela vida
O filme de ficção Terra Vermelha conta a história de luta do povo Guarani Kaiowá para recuperar as suas terras, no Mato Grosso do Sul. O fazendeiro Moreira (interpretado pelo ator Leonardo Medeiros) tem a posse legal da área, e lucra com o agronegócio. Por ter a posse do local, Moreira havia expulsado os Guarani, que eram obrigados a viver em uma reserva indígena. Entretanto, o povo não aceita essa situação e, liderado pelo cacique Nádio (interpretado pelo ator Ambrósio Vilhalva), decide acampar nas terras de Moreira. A atitude dos Guarani Kaiowá causa uma série de conflitos entre eles e os fazendeiros da região.

Terra Vermelha consegue transmitir de maneira muito significativa os vários problemas reais que os indígenas enfrentam ao serem obrigados a sair de suas terras. Perder a sua terra, para as sociedades indígenas, é perder uma parte essencial de sua cultura. O longa mostra que a falta de perspectivas em usufruir de uma existência plena é o motivo pelo qual muitos jovens Kaiowá se suicidaram. Os conflitos identitários, o alcoolismo e a fome também são retratados no filme. Fica evidente que a terra é tudo para essa sociedade, é sua mãe, sua cultura, a sua essência enquanto povo. Como diz Krenak (2019, p.22):
A Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência.  
Terra Vermelha mostra como a colonialidade do poder tece as relações entre indígenas e não indígenas. O personagem Moreira, branco, fazendeiro e rico é dono de uma casa luxuosa construída nas terras que, pelas leis brasileiras, são suas. É ele, e os outros fazendeiros, que mandam e desmandam na região. Aos indígenas cabe aceitar passivamente esse discurso de “superioridade” da elite ocidental e continuar sendo escravizados por ela.

Uma escravidão que é diferente daquela estabelecida no século XVI, mas que está inserida nas mesmas redes de memória. O filme mostra que hoje os indígenas são escravos em nome do “progresso” do país. Cabe a eles a função de servir os fazendeiros, ajudando a desmatar as suas próprias terras em prol do agronegócio.

Se no século XVI, o discurso era de que os europeus estavam ajudando a salvar as almas dos indígenas, agora o discurso colonial é de que os fazendeiros estão “ajudando” na economia desses povos, empregando-os em suas fazendas. Como diz Krenak (2019, p.21), “é a ideia de que os índios deveriam estar contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza”.

Terra Vermelha mostra que os Guarani Kaiwoá não aceitam essa lógica colonial e reivindicam o seu direito à terra, o que está completamente ligado ao seu direito à vida. Há uma cena, no minuto 36:32, em que fica bem evidente que os personagens indígenas não são passivos diante desse discurso de “integração do povo Guarani como trabalhador subalterno do sistema colonial moderno”.

A cena é a seguinte: o personagem Dimas (interpretado pelo ator Matheus Nachtergaele), dono de um mercado na região, chega de caminhão na terra em que os indígenas estão acampando. O objetivo de Dimas é recrutar os jovens Kaiowá para trabalhar em uma das fazendas da região e, também, levar as mulheres indígenas para serem empregadas domésticas nas casas dos fazendeiros. Ao perguntar para o indígena Osvaldo (interpretado pelo ator Abrísio da Silva Pedro): “e aí, vamo trabalhar?” O menino responde: “eu não”. E segue para a floresta para caçar.

 Na cena em que a sociedade indígena chega para acampar na terra, eles fazem um ritual em homenagem aos seus antepassados que estão enterrados ali, em um espaço que agora está completamente devastado. Compreendemos que os personagens indígenas de Terra Vermelha tentam exercer o que Mignolo (2018) chama de pensamento liminar. Voltar para as suas terras e acampar nelas é uma tentativa de viver a sua história e a sua cultura, às margens da colonialidade do poder. Como explica Mignolo (2018, p.33), “a gnose liminar, enquanto conhecimento em uma perspectiva subalterna, é o conhecimento concebido das margens externas do sistema mundial colonial/moderno”.

                        Figura 1
      Guarani Kaiowá fazem ritual para os seus ancestrais que estão enterrados em suas terras
Do ponto de vista dos personagens não indígenas, Terra Vermelha apresenta dois discursos distintos, mas que apresentam regularidades entre si. De um lado, acompanhamos o discurso de Moreira. Para ele, os indígenas são um entrave para o desenvolvimento e precisam sumir, morrer. Se não for para morrer, que eles se integrem e contribuam para o “desenvolvimento” e o “progresso” do país, trabalhando no agronegócio.

Já a esposa de Moreira (interpretada pela atriz Chiara Caselli), materializa o olhar estrangeiro que se impõe sob as sociedades indígenas. Ela é inglesa e trabalha como guia turística para os estrangeiros que vão ao Mato Grosso do Sul curiosos para observar os povos indígenas. Para a esposa, os Guarani Kaiowá não são um entrave e, sim, um negócio. Ela contrata os indígenas mais jovens para que eles representem aos turistas como é um índio de “verdade”.

Logo na primeira cena do filme, vemos o trabalho da inglesa. Ela está em um barco com os turistas. O grupo passeia pelo rio e contempla uma floresta exuberante, que ainda não foi devastada. Em pé, nus, pintados de urucum, e com arcos e flechas nas mãos, os indígenas posam, um do lado do outro, para os estrangeiros. Esta cena atualiza o discurso de que os indígenas são pessoas “paradas no tempo” (CARVALHO, 2015), que vivem tal qual os povos que habitavam o país em 1500.
     
    Figura 2, 3, 4 e 5: indígenas posam para os turistas estrangeiros

  
Embora com uma visão distinta sobre a presença dos Guarani Kaiowá, Moreira e a esposa materializam o mesmo enunciado: os indígenas só podem existir se aceitarem dançar sob a lógica do capital, seja exercendo trabalhos que contribuam com o agronegócio, seja compactuando com o discurso de que são seres “exóticos”, que servem para a contemplação dos olhares curiosos dos não indígenas.

Na segunda cena de Terra Vermelha, após a passagem do barco que leva os estrangeiros, os Guarani saem de suas posições teatrais, vestem roupas ocidentais e recebem o pagamento pela representação. Nos dias seguintes, os jovens Kaiowá Osvaldo e Irineu (interpretado pelo ator Ademilson Concianza Verga) avistam duas meninas indígenas, que estavam com eles na primeira cena, enforcadas em uma árvore. Elas se suicidaram.

       Figura 6
      Cena em que jovens Guarani Kaiowá se suicidam
Essas sequências de cenas denunciam como o “trabalho turístico” é prejudicial para o desenvolvimento psicológico e cultural dos jovens indígenas. O filme pretende mostrar como a lógica colonial tenta impedir o pleno desenvolvimento de outras cosmologias, como a dos Guarani Kaiwoá. Terra Vermelha mostra que a falta de perspectivas em viver uma vida plena, exercendo a sua cultura, na sua terra, é o motivo principal do suicídio desses jovens.

O filme também opta por não apresentar uma visão maniqueísta dos personagens. Prática comum em audiovisuais que retratam povos indígenas, muitas vezes, construídos como pessoas completamente boas e ingênuas, ou então, completamente más. Em Terra Vermelha, há personagens indígenas que sabem a importância de lutar por suas terras e cultura, como também há personagens que estão imersos nessa lógica colonial e desejam participar dela. Como é o caso do indígena Tito (Poli Fernandez Souza), que ajuda na emboscada que Moreira e os outros fazendeiros preparam para matar o cacique. Tito participa do crime, pois deseja ganhar dinheiro e sair do acampamento.

Há também a empregada doméstica da casa de Moreira, que prefere trabalhar e morar na casa do patrão, do que lutar ao lado do seu povo, mesmo sabendo que foi ele quem mandou matar o cacique Guarani Kaiowá. Podemos observar também que os indígenas lutam para ter a sua terra de volta, mas também aceitam, às vezes, trabalhar nas fazendas ou no turismo comandado pela esposa de Moreira, pois precisam de dinheiro para comprar comida. Isso mostra como as relações entre os povos considerados subalternos pelo sistema colonial e o povo que perpetua essa colonialidade são conflituosas. Há um “sangrento campo de batalha” (MIGNOLO, 2018, p.35) para se exercer o pensamento subalterno dentro da colonialidade do poder.

A partir de Foucault (2014), compreendemos que no dispositivo há estratégias de poder, mas também há estratégias de resistência. Neste sentido, podemos pensar o filme Terra Vermelha como uma produção de resistência dos Guarani Kaiowá. Ele é narrado do ponto de vista da sociedade indígena, os atores são da etnia Guarani Kaiowá e a história apresentada nas telas é inspirada na realidade em que eles vivem. Os personagens indígenas também falam a língua de seu povo, demostrando uma preocupação do filme em ressaltar que a língua, assim como a terra, deve ser preservada.
Referências
CARVALHO, Vívian de Nazareth Santos. O indígena na telenovela brasileira: discursos e acontecimentos. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação). Universidade Federal do Pará, 2015.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2008.
_____. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. São Paulo: Paz & Terra, 2014.
KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. São Paulo: editora Humanitas, 2018.
SILVA, Juliano Gonçalves da. Entre o Bom e o Mau Selvagem: ficção e alteridade no cinema brasileiro. Revista Espaço Ameríndio, v. 1, n. 1, p. 195-210, jul./dez. 2007.
Filmes de ficção
Como Era Gostoso o Meu Francês, 1971
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, 1979
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020.
Canibal Holocausto, 1980
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020.
Iracema, uma transa amazônica, 1981
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020.
Terra Vermelha, 2008
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020. 
Canibais, 2015
Disponível em:
Acessado dia 11 de jun. de 2020.

Vívian de Nazareth Santos Carvalho é jornalista, mestra em Ciências da Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM-UFPA) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (PPGL-UFPA). Pesquisa sobre audiovisual e sociedades indígenas. Currículo Lattes. 

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