Judith Butler: “Deveria haver outras formas de refúgio que não dependessem de uma falsa ideia de lar”
“Sopa Wuhan: Pensamento Contemporâneo em Tempos de Pandemia” é o título de uma publicação digital que coleta artigos de vários intelectuais. Em dias escuros, a demanda por pensamentos é urgente. Em uma entrevista para La Tercera, a filósofa americana Judith Butler, uma das autoras incluídas neste livro, reflete sobre o que essa catástrofe nos impõe.
Constanza Michelson 03/04/2020
Judith Butler é filósofa e acadêmica da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, e suas contribuições são reconhecidas em filosofia política e ética. Haverá uma nova forma de eugenia e como será gerenciada? Quais vidas serão agraciadas com valor e quais vidas serão consideradas dispensáveis? Essas são perguntas sobre a pandemia que, segundo a autora de Gênero em Disputa, devem ser respondidas com ciência, ética e política. Há alguns dias, a editora ASPO (Isolamento Social Preventivo e Obrigatório) lançou “Sopa de Wuhan: Pensamento Contemporâneo em Tempos de Pandemia”, uma compilação de ideias que Butler e outros pensadores como Byung Chul-Han escreveram sobre Covid-19. O trabalho gratuito reúne textos publicados entre 26 de fevereiro e 28 de março.
– Como você está? Nestes dias seu país foi duramente atingido pelo vírus.
-Estou bem, obrigada. Estou em casa, como todos na Califórnia, mas posso caminhar e me encontrar através do aplicativo Zoom. Todos conhecemos pessoas que estão doentes e alguns de nós conhecem outras que morreram.
-Como você lê o tratamento que foi dado à pandemia? Em uma entrevista, você disse que Trump queria comprar os direitos exclusivos de uma empresa alemã sobre uma possível vacina, mas que eles responderam: “O capitalismo tem um limite”.
– Por um lado, existem governos que tendem a negar a realidade do vírus e como ele se espalha e estão colocando em risco o seu povo. Bolsonaro é o exemplo mais óbvio. Por outro lado, o gerenciamento de vírus pode se tornar uma ocasião para afirmar e fortalecer o controle do governo. Vemos isso em Israel e na Hungria, mas também em muitos países onde os militares são chamados a administrar a população. Pessoalmente, sou a favor de uma forte resposta do governo, pois é necessário mais espaço no hospital, mais tratamento e mais informações. Ao mesmo tempo, vemos muitos casos em que as comunidades entendem a necessidade de se isolar para seu próprio bem, para sua própria saúde e a saúde de outras pessoas. E esta é uma forma muito impressionante de autogoverno. Não há como prever em que direção a política se moverá após o coronavírus, mas agora temos a oportunidade de fortalecer os ideais de solidariedade social.
– Embora você não possa fazer futurologia, muitos se preocupam com a evolução do modelo econômico. O capitalismo poderia realmente ser forçado a ter um limite? Ou talvez, como aconteceu em outras catástrofes, ganhe novo impulso.
– O mundo deve mudar, e os ideais do socialismo democrático devem ser os mais valiosos. Quando vemos como certas populações são privadas de cuidados de saúde e direitos básicos, e que isso leva à sua morte mais provável, devemos responder com indignação e comprometimento. Garantir abrigo, assistência médica e participação pública na construção de uma democracia nunca foi tão importante. Muitas empresas estão prontas para se beneficiar de tratamentos médicos, especialmente vacinas, e na medida em que os governos permitirem que os mercados decidam o preço e a distribuição desses bens, os pobres serão privados de seus direitos. Trump trata o governo como se fosse um negócio, essa pode ser uma característica definidora do neoliberalismo. Mas, idealmente, deveria preservar os direitos básicos das pessoas, especialmente dos pobres, a uma vida habitável.
– Uma controvérsia acentuada pela pandemia diz respeito à equação entre segurança e liberdade. Quanto devemos ceder à vigilância em benefício da saúde?
– A intervenção de Agamben (filósofo italiano criticado por seu artigo “A invenção de uma epidemia”, na qual denunciou os riscos trazidos pelos estados de exceção decretados pelo vírus) foi claramente um erro. Ele só podia ver a intensificação do poder do Estado e a perda de liberdades civis para o povo. Mas é necessária uma forte resposta do governo para garantir que os recursos médicos estejam disponíveis para as pessoas e sejam distribuídos equitativamente. Portanto, para garantir vida e igualdade, precisamos de poder governamental responsável.
– Agamben respondeu às críticas dizendo – entre outras coisas – que as guerras sempre deixam legados para os tempos seguintes, arame farpado, usinas nucleares, por exemplo. Talvez essa catástrofe nos deixe “a distância social” ou educação on-line. O que poderia acontecer com a biopolítica?
– Biopolítica é um termo que descreve as operações de energia que buscam gerenciar populações. Não são necessariamente decisões emitidas pelo poder soberano, mas, mais frequentemente, são políticas e práticas que surgem de várias origens nos regulamentos governamentais e sociais. O gerenciamento do coronavírus foi dirigido pelo poder executivo ou soberano, que não é o mesmo que biopolítica. Ao mesmo tempo, o tipo de racionalidade que os governos usam está impregnado de suposições biopolíticas. Quem deve receber os medicamentos quando eles são desenvolvidos e quem não deve? Haverá uma nova forma de eugenia e como será gerenciada? Quais vidas serão agraciadas com valor e quais vidas serão consideradas dispensáveis? Essas formas de dividir populações são biopolíticas. Joseph-Achille Mbembe os chamou de “necropolíticos”: maneiras de organizar a morte. À medida que o cálculo de custo-benefício entra em cena, ouvimos funcionários do governo decidirem implícita ou explicitamente quem deve viver ou quem deve morrer. Eles não precisam “executá-los” como os soberanos tradicionais. Eles podem “deixá-los morrer”, deixando de fornecer benefícios à saúde ou refúgios, mantendo as pessoas em prisões onde a taxa de infecção é alta ou, no caso de Gaza, mantendo a fronteira fechada.
– Voltamos a falar da importância da verdade, por um lado, para enfrentar os danos que as notícias falsas causam. Mas um discurso, talvez oportunista, também colocou a ciência como a única disciplina verdadeira, que parece estar a serviço da negação de conflitos políticos. No Chile, por exemplo, há quem diga que hoje não devemos continuar pensando na crise social que eclodiu em outubro.
– Isso me parece um movimento cínico, muito parecido com o de Netanyahu suspender o processo judicial contra ele, devido ao vírus! Esses tipos de movimentos invisíveis são injustos e você deve se opor a eles. Eu também acho que é o momento da verdade e da ciência. Nos Estados Unidos, temos um presidente que mente para nós sobre o vírus, a ciência e o futuro. Sou muito grata por haver corajosos epidemiologistas. Todos nós dependemos vitalmente de bons cuidados de saúde, profissionais de saúde confiáveis e excelente pesquisa científica. Portanto, o conhecimento sobre o vírus deve ser verdadeiro. Então, se nos perguntarmos por que deveria ser verdade, há muitas razões: os cidadãos têm o direito de conhecer as condições em que vivem e de julgar se seus governos estão cuidando bem delas. Nesta última afirmação, você notará que “o direito de saber” e “julgamento” são conceitos que estão fora da ciência e que pertencem à ética e à política da assistência médica. Quem decide se alguém pode ter acesso e quais condições decidem se pode pagar? A ciência médica não pode responder a essa pergunta, mas a ética e a política podem. E se perguntamos o que constitui “autonomia” e como ela é definida, então estamos no campo da interpretação, ética e humanidades. Portanto, não podemos sequer descrever alguns dos problemas mais importantes do nosso tempo se não recorrermos a todos esses modos de pesquisa. E seria tolice pensar que todos concordamos de antemão sobre o que é autonomia ou quem deveria tê-la. Essas são questões de interpretação e definição que permeiam o mundo político. Tais perguntas não negam a ciência, mas a ciência não pode responder a essas perguntas.
-Uma questão política, sem dúvida, é sobre quem pode ou não ser confinado. Além disso, o que acontece dentro de casa. Feminicídios e assassinato de uma garota durante a quarentena já foram registrados na América do Sul.
– O lar geralmente aparece como um espaço “seguro” contra o vírus. Mesmo que seja (o que nem sempre é verdade), isso não significa que é seguro para mulheres que sofrem violência dentro de suas próprias casas. Deveria haver outras formas de refúgio que não dependem de uma falsa ideia de lar como um lugar seguro. Espero que possamos repensar o que significa “refugiar-se”: esse é um conceito no qual os governos se baseiam, mas geralmente é uma noção idealizada da que a casa da família que esconde a verdade.
Mundo habitável
Em seu último livro, “The Force of Non violence.”, você trabalha com a ideia de interdependência. O relacionamento com os outros não é um “bom sentimento”, mas algo que nos constitui. Então você diz que destruir alguém é destruir algo de nós mesmos. Essa crise nos força a experimentar interdependência além de um slogan? (Entrevistas sobre o livro em inglês e português)
– Não quero dizer que o vírus esteja servindo aos propósitos da educação. O vírus deve ser curado e não há lição necessária para o vírus nos ensinar. E, no entanto, a maneira como o vírus funciona nos desafia a repensar o que é ser você mesmo. Posso estar infectado, mas também posso infectar outra pessoa. E isso pode acontecer sem que eu saiba. Portanto, esse “eu sou assim” pode ser danificado e prejudicar os outros. Estou conectado não apenas às pessoas que conheço, às comunidades às quais pertenço, mas também ao estranho. Eu posso prejudicar aquele estranho ou ser prejudicado por esse estranho, e isso é verdade não apenas no mundo criado pelo vírus, mas também no nosso mundo cotidiano. A ganância corporativa do Norte depende da política extrativista que devastou o Sul; no entanto, aqueles que insistem nesse “direito” à exploração não são desafiados por danos éticos. O potencial de reciprocidade é destruído, a ideia de que poderíamos viver juntos em igualdade de condições em um mundo habitável, uma terra habitável.
– O que significa o poder da não-violência? É possível convencer quem exerce este poder e também quem a considera uma forma legítima de luta social?
Meu argumento é que geralmente cometemos um erro se pensarmos que a violência é o meio pelo qual podemos alcançar um fim não violento. Os meios que usamos para mudar o mundo já têm uma visão de mundo. Se escolhermos a violência como um meio, trazemos mais violência ao mundo e não podemos controlar essa violência.
– É possível uma política de interdependência, quando os regimes de subjetivação promovem o individualismo e o “capitalismo do ego”?
– Claro, um mundo de igualdade e interdependência parece impossível dessa perspectiva. Mas essa é mais uma razão para desenvolver essa visão. Não devemos aceitar que o “capitalismo do ego” seja um fato necessário e imutável. Pode resistir e minar. Vemos isso em fortes movimentos de solidariedade de mulheres, indígenas e pobres.
María Inés La Greca, professora e pesquisadora de estudos de gênero na UBA e na Universidade Nacional de Três de Febrero, colaboraram nesta entrevista.
Tradução: Ivânia dos Santos Neves