Projetos de felicidade pressupõe, sobretudo, uma vontade genuína de transformar ideias-ações em realidades mais justas, inclusivas, ancestrais, insubmissas, ecologicamente sustentáveis. Pensado inicialmente por Maria do Rosário Gregolin e por Ivânia Neves, líder do Grupo de Estudos Mediações, Discurso e Sociedades da Amazônia (Gedai), o Colóquio Internacional Mídia e Discurso na Amazônia (Dcima), foi semeado no interior da Amazônia, objetivando a materialização de projetos de felicidade em diálogo com pesquisadores e pesquisadoras compromissados com as questões que afetam esse território e seus povos.
Em território Mairi, o VI Dcima, ocorreu na Universidade Federal do Maranhão, em São Luís, área que integra a Amazônia Legal, entre os dias 18 a 20 de setembro de 2024. Com o tema “Mudanças Climáticas e Oralidades Pan-Amazônicas”. O evento foi organizado pelo Programa de Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da UFMA, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT) também da UFMA e o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (PPGL/UFPA).
De caráter interdisciplinar, o evento reuniu pesquisadores da Pan-Amazônia e de diversos estados, comprometidos com o tema proposto. Um dilema emergente da contemporaneidade são as mudanças climáticas, que trazem desafios significativos para a preservação do meio ambiente e a sustentabilidade das comunidades locais. Durante as discussões, foram abordados não apenas os impactos ambientais, mas também as implicações sociais e culturais que essa problemática espraia, destacando a necessidade de integrar saberes tradicionais, preservados pela oralidade, e científicos para encontrar soluções ancestrais para a construção de um futuro possível.
Conferência de Abertura – Discursos y memória – Conferencista: Prof.ª Dr.ª Ana Pizarro(Universidade Santiago do Chile)
Na conferência de abertura do VI Dcima, a Prof.ª Dr.ª Ana Pizarro destacou que a partir da década de 1980, vivemos uma profunda transformação nas relações culturais marcada pela pela transculturação. A nova revolução das comunicações impulsionou a interconexão entre diferentes culturas, permitindo um intercâmbio entre as culturas. Esse processo de transculturação desafiou as concepções ocidentais dominantes, que muitas vezes se baseiam na separação entre natureza e cultura. A modernidade ocidental, com seu enfoque na exploração e no controle da natureza, gerou um desenvolvimento que, em muitos aspectos, é considerado negativo. Diante desse cenário, urge a necessidade de novas formas de conhecimento que transcendem a lógica ocidental. As culturas tradicionais e indígenas, por exemplo, oferecem saberes e práticas que enfatizam a interdependência entre ser humano e natureza, propondo alternativas sustentáveis e respeitosas.
Mostra Interativa: Gamezônia e Amazônia Virtual
O Gamezônia é um jogo que visa a educação decolonial, democratizante e transversal. O jogo apresenta, com personagens que representam os povos e comunidades tradicionais, a história da Amazônia a partir da implantação de cinco grandes projetos de desenvolvimento que modificaram drasticamente a paisagem e as dinâmicas sociais dos territórios afetados. São eles: Pinturas rupestres, caverna da pedra pintada, Monte Alegre-PA; Parque Arqueológico do Solstício, Calçoene-AP; Rio Volta Grande do Xingu, Altamira-PA; Serra espelho da Lua, Nhamudá-AP. O jogo é lúdico, interativo e cada cenário corresponde a um lugar real.
Mesa “Pan-Amazônia na contemporaneidade: povos indígenas, oralidades e memórias”
Nessa mesa, a Prof.ª Dr.ª Luisa Elvira Belaunde Olschewski (Universidad Nacional Mayor de San Marcos – Peru) e a Prof.ª Dr.ª Ivânia Neves (UFPA) debateram a Amazônia a partir dos rios, para além das fronteiras nacionais que impõe uma falsa ideia uma fragmentação dos rios. O berço da Bacia Amazônica é gestado na Cordilheira dos Andes, em Cusco, capital do Peru. A Bacia Amazônica é um grande território de trocas e confluências, de oeste-leste da América do Sul, onde diversas culturas interagem ao longo de suas margens. O diálogo transcendeu as fronteiras e visibilizou a Amazônia como um todo interligado.
Painel 1 – Cartografias das margens: sujeitos, espaços e resistências – Prof.ª Dr.ª Regina Baracuhy (UFPB) Prof. Dr. Jefferson Campos (UNIR) Prof.ª Dr.ª Denise Witzel (UNICENTRO) Prof. Dr. Lucas Lopes (UFPA) Moderadora Prof.ª Dr.ª Mônica da Silva Cruz (UFMA)
- NÃO ERAM APENAS FREIRAS: DISCURSOS PRÁTICAS DE LIBERDADE E CORAGEM DA VERDADE. Nessa apresentação, a Prof.ª Dr.ª Denise Witzel (UNICENTRO) destaca a desobediência parresiástica de quatro freiras: Maria Valéria Rezende (1942), Madre Maurina (1924), Ivone Gebara (1944) e Dorothy Stang (1931), que transgrediram as funções historicamente foram impostas sobre o seu social. Essas freiras se colocaram entre a verdade e o risco da violência, na luta pelos direitos humanos e da natureza e o enfrentamento às forças que operam contra esses direitos.
- SUBJETIVIDADES LIBERTÁRIAS EM ESPAÇOS HETEROTÓPICOS: CORPOS NÃO-BINÁRIES EM QUADRILHAS JUNINAS DO NORDESTE. A Prof.ª Dr.ª Regina Baracuhy (UFPB), nessa apresentação, destacou a presença dos corpos não-bináries agentes de ruptura das normas tradicionais de gênero durante a celebração da diversidade nas quadrilhas juninas. Mostrando, assim, como esses corpos, marginalizados nos demais espaços da sociedade, são protagonistas nas quadrilhas juninas, que oferecem a vivência da utopia, do sonho, que só é possível nesse espaço heterotópico.
- PARA ONDE OS RIOS VÃO QUANDO ELES MORREM: UMA NECROPOLÍTICA DAS MARGENS. Em sua fala, o Prof. Dr. Jefferson Campos (UNIR) denuncia a asfixia provocada pelas queimadas, que leva a corpos sem vida, rios secos e territórios devastados. Tudo isso como consequência das ações promovidas pelo neoliberalismo que afeta, sobretudo, as vidas que estão à margem.
- OS SUJEITOS À MARGEM DO RIO MAR DE LÁ: A SEDUÇÃO PELA LÍNGUA-CULTURA INGLESA E PELO OUTRO. O Prof. Dr. Lucas Lopes apresenta resultado da pesquisa realizada com professores de língua inglesa, egressos do curso de Letras Língua Inglesa da UFPA – Campus Universitário do Tocantins (Cuntins), no qual analisa os discursos sobre o ensino dessa língua global nas margens do Rio Mar Tocantins. A partir das análises dos enunciados dos professores, fica evidente a importância de se anunciar para o mundo, na língua do outro, a cultura, a história e a resistência dos ribeirinhos.
Painel 2 – Memórias e Narrativas Orais na produção de subjetividades amazônicas – Prof.ª Dr.ª Lucilena Gonzaga (UFPA) Prof. Dr. Edgar Bracamonte Lévano(Universidad Nacional Pedro Luiz Gallo – Peru) Prof. Dr. Arkley Bandeira (UFMA) Prof. Dr. Luciano Rocha da Penha (UFMA) Moderador Prof. Dr. Cesar Roberto Castro Chaves(UFMA)
- MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE RIBEIRINHA: ENCANTOS DO TOCANTINS. Nesta apresentação, Lucilena Gonzaga (UFPA) compartilha suas memórias de infância à beira da Várzea do Rio Tocantins. Ela destaca um evento extraordinário de 1980, quando uma cheia atingiu 20 metros, impactando profundamente a vida de sua avó, Josefina, que perdeu tudo na cheia, menos as memórias desse acontecimento. Além disso, a professora reflete sobre as experiências vividas diante das transformações sociais e ambientais resultantes de projetos como a hidrelétrica de Tucuruí.
- “A TERRA QUE DÁ O BARRO, É UMA TERRA DE MUITAS HISTÓRIAS”: TECENDO REDES NO QUILOMBO DE ITAMATATIUA, MARANHÃO BRASIL. EM SUA FALA, O PROF. DR. ARKLEY BANDEIRA (UFMA) aborda a importância da comunidade quilombola de Itamatatiua, no Maranhão, destacando a história, cultura e desafios enfrentados por suas mulheres, como Dona Neide, que lidera a produção cerâmica e a luta por direitos territoriais. A autora enfatiza a relação da comunidade com a terra, simbolizada pela frase “a terra que dá o barro é uma terra de muitas histórias”, e a necessidade de preservar práticas culturais ameaçadas de desaparecimento e descreve ações de documentação do saber cerâmico para garantir sua transmissão às futuras gerações. A fala também destaca a necessidade de reconhecer e fortalecer os laços comunitários e a cultura quilombola, essencial para a identidade e subsistência da população local.
- AMAZÔNIA NO RITMO DAS DA DIFUSÃO DAS MUDANÇAS NO CLIMA: SELO VERDE, ODS 7 E O PODER SOBRE TERRITÓRIOS E ÁGUAS. Em sua fala, o Prof. Dr. Luciano Rocha da Penha (UFMA) discute a difusão de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e sua expansão na Amazônia e no Nordeste do Brasil. O autor ressalta que, embora as PCHs sejam consideradas uma fonte de energia limpa e acessível, sua instalação pode ter impactos negativos significativos em comunidades, como quilombos e aldeias indígenas, e no meio ambiente. A crescente demanda por energia renovável, impulsionada por mercados externos, leva a uma expansão territorial, muitas vezes em detrimento das comunidades locais.
Painel 3 – Discursos sobre mudanças climáticas e seus impactos na vida das comunidades – Prof. Dr. Ronaldo Sodré (UFMA) Prof.ª Ma. Márcia Kambeba (UFPA) Prof. Dr. Marco Antonio Custódio (UFMA) Moderadora Prof.ª Dr.ª Ana Caroline Amorim Oliveira (UFMA)
- Em sua fala, a Prof.ª Ma. Márcia Kambeba (UFPA) aborda a relação intrínseca dos povos indígenas com o território, que não se trata apenas de um lugar, “para nós ele não é só um espaço habitado o território para nós ele é a nossa própria existência, ele é o nosso próprio corpo. Os indígenas utilizavam práticas agrícolas tradicionais, como a adubação do solo com restos de plantas, que contribuem para a fertilidade da terra, formando a “Terra preta de índio”. Além disso, a sabedoria ancestral, que inclui o uso de ervas medicinais, é fundamental para a saúde e bem-estar das comunidades. Assim, a conexão com a terra e os rituais culturais é vista como essencial para enfrentar esse grande desafio: as mudanças climáticas.
- MUDANÇAS CLIMÁTICA, AGROTÓXICOS E A CONFLITUALIDADE DOS MODELOS DE DESENVOLVIMENTO NO MARANHÃO. O Prof. Dr. Ronaldo Sodré (UFMA) aborda a diversidade de sujeitos sociais no Maranhão e suas lutas em um contexto econômico e de desenvolvimento que, muitas vezes, é contrário aos seus interesses desses povos. O estado, que possui a maior quantidade de quilombos e a segunda maior população quilombola do Brasil, também enfrenta um elevado número de conflitos no campo. As mudanças climáticas são um tema central, refletindo a tensão entre diferentes modos de vida e as realidades do negacionismo climático. Os dados do IBGE e do INPE mostram um aumento significativo de queimadas e a liberação crescente de agrotóxicos, afetando comunidades tradicionais e a saúde pública. A agricultura familiar, responsável por uma parte significativa da produção alimentar, recebe menos investimento em comparação ao agronegócio. Com isso, a pulverização de agrotóxicos tem gerado problemas de saúde e afetado a produção local, evidenciando a necessidade de um repensar sobre as práticas agrícolas e os modelos de desenvolvimento no Maranhão.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O IMPACTO NA SAÚDE DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS. O Prof. Dr. Marco Antonio Custódio (UFMA), evidencia a importância de discutir o impacto das mudanças climáticas na saúde das comunidades tradicionais, especialmente em relação à falta de dados específicos sobre essas populações. O aumento da atividade humana desde 1950 está ligado a um aumento das emissões de gases de efeito estufa e suas consequências, incluindo a degradação ambiental e impactos diretos na saúde, como doenças cardiovasculares e respiratórias. Além disso, as mudanças climáticas estão associadas ao aumento de desastres naturais, insegurança alimentar e impactos na saúde mental. Estudos mostram que 23% das mortes no mundo estão relacionadas a mudanças climáticas, com doenças infecciosas e cardiovasculares. Populações vulneráveis, como as comunidades negras e indígenas, enfrentam maiores riscos. A fala conclui com a necessidade de integrar conhecimentos tradicionais e científicos para desenvolver estratégias que protejam essas comunidades e promovam a saúde planetária.
Minicurso – Mulheres e Sustentabilidade
Dentre as atividades desenvolvidas, no evento, tivemos o Minicurso – Mulheres e Sustentabilidade ministrado pelas pesquisadoras Prof.ª Dr.ª Ivânia Neves (UFPA), Prof.ª Ma. Márcia Kambeba (UFPA) e a Prof.ª Ma. Roberta Sodré (UFPA) tem como objetivo analisar a intersecção entre gênero e sustentabilidade, com ênfase no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) Igualdade de Gênero. Neste sentido, buscou proporcionar uma compreensão profunda tanto das perspectivas locais quanto globais sobre o assunto, promovendo a valorização do conhecimento tradicional e o empoderamento de mulheres em contextos sustentáveis.
Comunicações orais dos integrantes do Gedai no VI Dcima
Os integrantes do Gedai desenvolvem pesquisas que contribuem para a área dos Estudos Discursivos Foucaultianos a partir do enraizamento nas territorialidades Amazônicas. Isto é, a teoria foucaultiana subsidiando a análise, e o fazer científico, de pesquisas que dialogam com a identidade dos sujeitos/as/es pesquisadores, associado à preocupação e compromisso com o “adiar o fim do mundo”. Durante o VI Dcima foram apresentados os seguintes trabalhos:
Raimunda Moraes Silva Gonzaga e Ivânia dos Santos Neves: Os saberes ancestrais e a representação do gênero feminino no trabalho da pesca artesanal em Limoeiro do Ajuru-PA;
Vitor Boavida Soares e Ivânia dos Santos Neves: Rádio e Televisão do Timor Leste-RTTL: o governo da língua e o multilinguismo;
Ana Carla Leite Veloso e Flávia Marinho Lisbôa: “Somos semente da irmã Dorothy”: relações de poder e resistência na Romaria da Floresta, em anapu-PA;
Allan Pinheiro de Carvalho e Ivânia dos Santos Neves: Quem vai segurar a queda do céu?;
Leticia Adelia de Sousa e Ivânia dos Santos Neves: O futuro ancestral que resiste e se constroi junto com as juventudes: Casa de Axé Estrela Dourada no bairro da Cabanagem, Belém/PA;
Camille Nascimento da Silva Pinto e Ivânia dos Santos Neves: Mairi: Cidade Tupinambá aterrada na tradução colonizadora;
Jonilson Moraes e Ivânia Neves: O corpo drag:Entre utopias e heterotopias;
Luís de Jesus e Flávia Lisbôa: Governo da língua e ensino de língua portuguesa em Timor Leste:Uma perspectiva histórico-discursiva;
Scoth Manuel Piango Cambolo e Ivânia dos Santos Neves: O dispositivo colonial e a promoção da colonialidade linguística no ensino fonético-fonológico do português em Angola;
Geciel Ranieri Furtado e Ivânia dos Santos Neves: A (re)(des)territorialização de práticas ribeirinhas como fissura no dispositivo colonial;
Luis Ximenes Santos: Discurso de Decolonialidade no Romance ‘O Plantador de Abóboras’’ de Luís Cardoso;
Thaianny Cristine Dias Gaia e Ivânia dos Santos Neves: As narrativas orais na construção das subjetividades e dos corpos Assurini;
Paula Karolinne da Silva Oliveira: Entre a civilização e a ancestralidade: Análise do discurso colonial e das práticas indígenas em São Caetano de Odivelas.
Mesa de Encerramento
A mesa de encerramento foi marcada pela poética das águas tocantinenses: um convite para o VII Dcima, que ocorrerá em 2026, em Cametá/PA, o município está localizado na região de integração do Tocantins, fazendo parte da mesorregião do Nordeste Paraense e pertencente a microrregião de Cametá que abrange as cidades de Abaetetuba, Baião, Cametá, Igarapé-Miri, Limoeiro do Ajuru, Mocajuba e Oeiras do Pará (IBGE, 2022). Essas cidades são atravessadas pelas águas do rio Tocantins e suas margens são povoadas por ribeirinhos, quilombolas e indígenas que constituem aglomerados de sujeitos e sujeitas com diversas culturas-linguagens que caracterizam os seus espaços de vivências.
E, assim, seguiremos construindo projetos de felicidade, traçando os caminhos de Mairi pelos rios, florestas e cidades desse território ancestral!
As mesas tiveram transmissão ao vivo e já estão disponíveis no canal do Youtube do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFMA). Confira as mesas redondas, na íntegra, através do link: https://www.youtube.com/@pgletrasufma