Felipe Bini
Orientadora: Dra. Denise Gabriel Witzel
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro-PR)
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
O projeto de pesquisa aqui idealizado visa investigar os modos de subjetivação do sujeito incel (involuntary celibate). Fundamentada teórica e metodologicamente nos Estudos Discursivos Foucaultianos, interessa-nos analisar os discursos que definem quem é e quem não é incel. Com Michel Foucault, podemos pensar em três modos como o ser humano é objetivado em sujeito a partir de discursos que buscam uma investigação e um estatuto cientifico, de práticas divisoras que delimitam os sujeitos entre si (quem é doente e quem é saudável, por exemplo) e por fim de uma prática sobre si mesmo, trabalhado por esse autor a partir da sexualidade (FOUCAULT, 2009). Esses modos de objetivação e subjetivação aparecem nos acontecimentos discursivos efetivados em enunciados produzidos e dispersados em determinados momentos históricos e sociais, seguindo regras internas e externas de controle e delimitação do discurso e de quem pode produzi-lo (FOUCAULT, 2014). Assim, os modos de subjetivação possibilitam o nascimento de sujeitos singulares, mas, como bem salienta Fernandes (2012), a análise dos discursos permite mostrar os procedimentos mobilizados para a produção de subjetividade.
De início, é importante esclarecer o que se entende ao se referir ao termo incel. Em diversos fóruns na internet, homens que se identificam como incels formam comunidades misóginas voltadas para espalhar ódio e criar teorias sobre os motivos de seu celibato: o feminismo, a dominação das mulheres sobre os homens, as características físicas dos próprios incels que os colocam como machos inferiores, etc. Essas teorias são compartilhadas por imagens dos diferentes tipos de corpos (do incel em contraste com o do homem alfa, por exemplo), definem categorias sociais e biológicas de gênero e raça (o homem que consegue mulheres é o Chad, se for negro é Tyrone, a mulher com certas características físicas é a Stacy, etc) e, muitas vezes, associam-se a discursos da chamada alt-right estadounidense. No limite, muitos planejam “going ER”, algo como “dar uma de ER”, se referindo às ações de Elliot Rodger, uma quase divindade no meio que matou 6 pessoas e feriu outras 16 em 2014, cometendo suicídio no final.
Interessa-nos analisar os discursos que tramam os modos de subjetivação desses sujeitos, focalizando os mecanismos de identificação com os pressupostos deste grupo. Para isso, temos em vista dois documentos iniciais de análise: a produção em vídeo e a autobiografia de Elliot Rodger, responsável pelo ataque de Isla Vista, na California, em 2014; e as diversas produções discursivas e não-discursivas de fóruns online especificamente populado por homens que se identificam como incel. Assim, propõem-se esta pesquisa a partir dos estudos discursivos foucaultianos para entender a articulação entre os discursos e a constituição desses sujeitos na relação de poder, saber e verdade, buscando identificar as séries enunciativas que constituem o campo analisado, seu confronto com outros saberes e poderes e a ligação entre as regularidades e os discursos que perpassam a noção de “ser homem” na atualidade.
Acredita-se que a pesquisa possa trazer novas perspectivas sobre essa reatualização violenta de uma misoginia já historicamente construída, possibilitando novos entendimentos sobre certos discursos contemporâneos aos quais, num primeiro momento, o discurso incelparece se ligar. As formas materiais em que esses discursos aparecem pressupõem memória e cultura: tanto pela consideração discursiva, quanto por aquilo que o grupo pesquisado constitui em sua linguagem como corpo, sociedade e comportamentos.
No epílogo de sua autobiografia, Elliot Rodger afirma que sexo é o conceito mais maligno da existência (“Sex is by far the most evil concept in existence”) e que o grande mal por trás da sexualidade é a “fêmea humana” (“The ultimate evil behind sexuality is the human female”), considerando as mulheres como bestas sem moral ou racionalidade e, portanto, os únicos homens que podem experienciar os prazeres sexuais e o privilégio de reprodução são aqueles aos quais as mulheres se sentem sexualmente atraídas, isto é, aos “homens estúpidos, degenerados e obnóxios” (the stupid, degenerate, obnoxious men). Rodger continua: “As mais belas das mulheres escolhem copular com os homens mais brutais, ao invés de cavalheiros magníficos como eu” (The most beautiful of women choose to mate with the most brutal of men, instead of magnificent gentlemen like myself).
Essas sequências enunciativas são uma síntese bastante clara não só das ideias de Rodger, mas daquilo que perpassa pela comunidade incel como um todo, sob diferentes aspectos e com algumas diversas explicações. A ideia, porém, de que a ‘fêmea humana” tem características de um absoluto impulso sexual que a fazem não-humana e de que se sente atraída por certos tipos de homens, normalmente com características “brutais”, em detrimento dos demais é como uma pedra de fundação desse pensamento. Dentro dessas comunidades, criou-se um termo específico para se referir às mulheres: femoid, uma aglutinação para unir “female” e “humanoid” (YOUNG, 2019).
A partir desses enunciados de Rodger, bem como da ligação interdiscursiva com os termos próprios da comunidade, pode-se compreender uma ligação com uma tentativa de “cientificidade” no discurso, em especial algo ligado a um certo biologicismo ao usar “cópula” ou mesmo ao criar o “femoid”. Høiland (2019) aponta justamente para uma ligação dessa cientificidade com uma leitura de psicologia evolutiva, numa tentativa de explicar em níveis de genótipo e fenótipo as razões para que alguns homens sejam “agraciados” com o interesse feminino e outros jamais o serão. A própria comunidade compartilha imagens para demonstrar como reconhecer um Chad(o tipo ideal de homem) de um incel tanto em nível comportamental quanto por estrutura óssea: em uma dessas imagens, que mostra dois garotos de perfil, um com a mandíbula mais recuada e outro menos, lê-se “a diferença de um Chad para um não-Chad é literalmente alguns centímetros de osso”:
Ao seguirmos algumas matérias de grandes canais midiáticos pós o ataque de Isla Vista, vemos se desenharem duas justificativas quanto ao atentado de Rodger: de um lado, a rejeição das mulheres e sua frustração quanto a isso; do outro, sua condição psicológica, seu histórico como vítima de bullying, sua “loucura”, o diagnóstico de Síndrome de Asperger, a passagem por vários psiquiatras e terapeutas ao longo da vida. As mesmas justificativas também são usadas pelo xerife responsável pelo caso, à época, bem como pelo pai de Rodger. Alguns outros canais mais alternativos e mesmo as poucas pesquisas recentes sobre o caso, porém, trabalham mais no viés de demonstrar a misoginia de espaços em que Rodger se situava (os fóruns de incel, parte da comunidade do jogo online World of Warcraft, etc) bem como sua ligação e apreço por ideias da atual alt-right e por figuras nazistas.
A figura de Elliot Rodger dentro da comunidade incel, em especial a anglófona, é a de um tipo de “santo”. Ele é referido como o “supreme gentlemen” e suas ações são rememoradas. Outros ataques similares por parte de incels após o acontecimento em Isla Vista fazem alusão direta a ele, sendo o mais famoso o ataque que matou dez pessoas em Toronto, no Canadá. Entretanto, é interessante notar que ele sequer foi o primeiro: mesmo no Brasil, há evidências bastante fortes de que o assassino do Massacre de Realengo, em 2011, frequentava e partilhava as ideias das comunidades incel, com um toque a mais (a partir de sua carta de suicídio) de religiosidade (LETA, 2011).
Claudine Aroche (2013), em um artigo que trabalha a antropologia da virilidade a partir da impotência, aborda o nascimento de fraternidades nos entreguerras e seu desenvolvimento para o advento do nazismo na Alemanha. Esses pequenos grupos de homens não só se comportavam de forma mais agressiva, como numa resposta para tentar restabelecer um corpo num mundo de mudanças, mas também esclareciam “as relações de homens entre si, assim como as suas relações com as mulheres” (AROCHE, 2013, p. 23). Nesse sentido, a formação de um grupo como incel não seria novidade, não fosse a própria distorção que fazem de si próprios: se nas fraternidades abordadas por Aroche há uma tentativa de restaurar uma potência viril na forma de um corpo coletivo que rechaça a impotência, a maneira como o incel localiza o seu corpo na comunidade é a partir justamente da impotência, seja na sua relação de rejeição pelas mulheres, seja na sua inferioridade quanto a outros homens. Ademais, as fraternidades de outrora constituíam noções de um físico avantajado advindo de comportamentos de violência ou de treinamento para se sobressair, enquanto nessa nova fraternidade tais ideias também são rechaçadas por um imperativo biológico. Se não nasceu um Chad¸ não se pode se tornar um.
Tem-se então (re)atualizações de discursos que se valem, de uma forma bastante própria e distorcida, de saberes científicos ao mesmo tempo em que se ligam a um discurso religioso, materialmente manifestados em comunidades virtuais e em jogos online. A interdiscursividade localizada aqui aponta para reatualizações da virilidade, das noções de gênero e mesmo de sexualidade. Se não há nada de novo na formação de pequenos grupos de homens que praticam violências a minorias, em especial às mulheres, há sem duvida algo de absolutamente singular na maneira como o incel se manifesta enquanto acontecimento: uma singularidade que, como qualquer discurso que venha a existir, encontra no corpo social e histórico, bases para ser aceito como verdadeiro. (GREGOLIN, 2016)
Referências:
FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014a. 74 p. Tradução de: Laura Fraga de Almeida Sampaio.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Michel Foucault: Uma teoria crítica que entrelaça o discurso, a verdade e a subjetividade. In: FERREIRA, Ruberval; RAJAGOPALAN, Kanavillil (Org.). Um mapa da crítica nos estudos da linguagem e do discurso. Campinas: Pontes, 2016. p. 117-132.
HAROCHE, Claudine. Antropologias da virilidade: o medo da impotência: o medo da impotência. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-jacques; VIGARELLO, Georges (org.). História da Virilidade: a virilidade em crise? Petrópolis: Vozes, 2013. p. 15-34.
HØILAND, Thea. Incels and the stories they tell: A narrative analysis of Incels’ shared stories on Reddit. 2019. 107 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Sociologia, Department Of Sociology And Human Geography, University Of Oslo, Oslo, 2019.
LETA, Thamine. Leia a íntegra da carta do atirador que invadiu escola no RJ. 2011. Disponível em: <http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/noticia/2011/04/leia-trecho-da-carta-do-atirador-que-invadiu-escola-no-rj.html>. Acesso em: 20 jan. 2020.
YOUNG, Olivia. What Role Has Social Media Played in Violence Perpetrated by Incels? Chapman University Digital Commons, Orange, p.1-39, 15 maio 2019. Disponível em: <https://digitalcommons.chapman.edu/peace_studies_student_work/1>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Felipe Bini é graduado em Psicologia pela Faculdade Guairacá, com especialização em Psicologia Clínica: Abordagem Psicanalítica pela PUC-PR e experiência na área de psicoterapia clínica, avaliação psicológica e saúde pública. Atualmente mestrando bolsista do programa de pós-graduação do departamento de Letras da Universidade Estadual do Centro Oeste, sob orientação da professora doutora Denise Gabriel Witzel.