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Gedai Cast 1: o dispositivo colonial e a necropolítica

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 Por Yorranna Oliveira


O bate-papo do primeiro episódio do Gedai Cast trouxe como convite e provocação pensar quem somos nós hoje em um mundo atravessado pela pandemia do coronavírus, no Brasil que elegeu Bolsonaro e na omissão de políticas públicas para as populações mais fragilizadas da Amazônia. Mediado pelo doutor em Linguística Maurício Neves Corrêa, com a participação das pesquisadoras Ivânia Neves (UFPA) e Flávia Lisbôa (UFRA), o podcast atualiza o debate sobre as políticas e os discursos de vida e morte na região. A inquietação sobre quem seremos depois desse período acompanhou as reflexões sobre como estamos respondendo às demandas do nosso tempo. Uma conversa necessária, guiada por dois conceitos fundamentais: o dispositivo colonial e a necropolítica; uma conversa marcada ainda por sensibilidades e afetos de quem vive na Amazônia.

Doutora em Linguística pela Unicamp e professora da UFPA, Ivânia Neves vem trabalhando em suas pesquisas a noção de dispositivo colonial. Essa definição está relacionada a todo um aparato de poder e saber para visibilizar determinadas narrativas e silenciar outras. A noção alia o conceito de dispositivo de Foucault e as reflexões dos estudos decoloniais a respeito das marcas deixadas pelos processos de colonização e sua perpetuação na história dos povos da América Latina. Ivânia chama atenção para a categoria de dispositivo e suas diferentes formas de manifestação, materializadas em nosso cotidiano nas mais diferentes linguagens, como no corpo, na arquitetura da cidade, em leis, em textos tão remotos como a Carta de Pero Vaz de Caminha. Todas produzindo sentidos que se naturalizam nas formas de ser e agir na vida social.


“Hoje a gente vive um momento muito especial de empoderamento dos corpos que não são corpos europeus. Então essa coisa do corpo é também um lugar em que o dispositivo colonial age e age de uma forma muito efetiva, a ponto de que as pessoas não se reconheçam coo indígenas, não se reconheçam como negras, não se reconheçam fora daquela lente que é um padrão estético europeu”, avalia Neves.

Pandemia e a política da morte

Para Ivânia, a pandemia do novo coronavírus acentuou as diferenças de atuação do dispositivo colonial nas regiões brasileiras, como na trajetória da Amazônia integrada ao país como uma eterna colônia do Sudeste, explorada em seus recursos e sem retornos para a população das cidades, evidenciada numa infraestrutura em colapso para atender os afetos pelo Covid-19. O contexto de saúde atualiza o dispositivo colonial sobre os corpos indígenas, manifestada na política da morte, que circunscreve a noção de necropolítica enquanto prática de decisão entre quais vidas importam e quais merecem morrer. “É como se a gente estivesse assistindo a chegada dos primeiros europeus, trazendo os seus vírus e contaminando as populações indígenas. Não tem como não pensar isso, como que se reatualiza essa coisa da necropolítica mesmo, dessa falta de proteção à vida. Não dá pra não dizer que o que o governo Bolsonaro não está fazendo uma política de morte em relação a indígenas, em relação a qualquer população brasileira mais carente. E não só mais carente. É uma política de morte a todo mundo que fez oposição a isso que ele coloca como um discurso de ser patriota no Brasil”, afirma a pesquisadora.


Na Amazônia, essas questões são potencializadas pela diversidade étnica das populações, em sua maioria não branca, de origem indígena e africana, cuja relação com a natureza se dá na contramão do modelo predatório do neoliberalismo e seu discurso de progresso, onde a floresta atrapalha e deve ser explorada. As políticas públicas para essas populações operam na perspectiva do dispositivo colonial e sua vinculação com a necropolítica. Termo que ganhou os holofotes do público e colocou em evidência a morte e o ódio como políticas, reforçadas pelos legados do processo de colonização na Amazônia brasileira.

Na análise da Flávia Lisbôa, docente da Universidade Federal Rural da Amazônia e doutora em Letras/Linguística pela UFPA, perceber os discursos e as práticas sobre essas populações pela perspectiva dos efeitos da colonização deixa em evidencia as verdades e crenças que foram deixadas como herança para a nossa atualidade, onde essas vidas não consideradas sem valor. “Os governos se sentem muito à vontade em distribuir esses recursos sempre desprestigiando esses povos, como um projeto racista mesmo, um projeto de diminuição desses sujeitos que foram racializados. Pessoas que não despertam a sensibilidade da sociedade, porque são pessoas que foram desumanizadas pelo processo de colonização. A omissão não é a falta de política, ela é a própria política da negação dos serviços públicos, dos acessos às pessoas que são racializadas, que não têm valor na sociedade”, acredita Lisbôa.


Resistências, enfrentamentos e o afeto que nos move

Respostas a essas urgências de enfrentamento à morte e ao ódio são solicitadas a todo momento e reforçam a necessidade de não partirem de única via, de um único do modo de existir. O afeto é uma possibilidade resistir para Ivânia Neves, como força que nos move para transformações e mudanças.


Flávia Lisbôa concorda com essa perspectiva e pontua as manifestações de solidariedade como ação. “E é uma solidariedade muito interessante, porque não é cristã, de que eu vou ajudar o próximo por uma motivação religiosa, para ganhar meu galardão no céu. É uma solidariedade extremamente politizada, de você ver que o outro está passando por necessidade, de que não têm sabão para lavar as mãos, de você vê a criação de redes de solidariedade nas comunidades. São exemplos de resistência, de enfrentar a pobreza, condições adversas para se precaver da contaminação. Essas manifestações em forma de redes de solidariedade, de auto-gerência diante da total omissão do governo federal são formas explícitas de resistência à principal política desse governo que é o ódio”.

Confira o episódio completa no nosso canal no Youtube > Clique aqui

REFERÊNCIA DO VÍDEO

 

O DISPOSITIVO COLONIAL E A NECROPOLÍTICA NA AMAZÔNIA. GEDAI-UFPA apresentado por Maurício Neves… [et al.]. 2020. 1 vídeo (55min 45seg). Publicado pelo canal GRUPO GEDAI. Disponível em: https://www.yutube.com/watch?v=DTtdjaWMSzg&list=PLQrDCYuf1jiYaZBCVLiMGXuU_UXDjhsr7&index=2&t=0s. Acesso em: 25 de agosto.

 

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.

________. Em defesa da sociedade curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora Wmf Martins Fontes, 2010b.

LISBÔA, Flávia. Língua como linha de força do dispositivo colonial: os Gavião entre a aldeia e a universidade. Tese de Doutorado. Belém-PA: Universidade Federal do Pará, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. In: Arte & Ensaios. n. 32, 2016. pp. 123-151.

NEVES, Ivânia. A Invenção do índio e as narrativas orais tupí. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2009.

________. EtniCidades: os 400 anos de Belém e a presença indígena. In: Revista Moara. Edição 43, jan-jul, 2015. pp. 26-44.

OLIVEIRA, Cristiane. Necropolítica linguística: silenciamento e resistência da língua tenetehara nas aldeias do Guamá.Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará, 2018. 

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina” S. Castro-Gómez, O. Guardiola Rivera y C. Millán de Benavides (eds.). Pensar (en) los intersticios. Teoría y práctica de la crítica poscolonial. Vol. Colección Pensar. Bogotá: Centro Editorial Javeriano, 1999.

_____. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

SILVA, Fábio Lopes da. Freyre & Foucault: casa-grande & senzala como microfísica do poder. In: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Jul./Ago./Set., 2006, Vol. 3, Ano III, 2006.

 

 

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