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Jacei Tatá Tupinambá – O Céu Tupinambá

Sobre constelações

Quando somos crianças, é comum olhar para o céu e ver as nuvens. Podemos imaginar que elas formam desenhos incríveis. Projetamos nas nuvens formam desenhos imaginários, que não tem o compromisso de ser exatamente como a realidade. Mas as nuvens estão próximas de nós, na atmosfera do planeta Terra e com muita facilidade se dissolvem, com muita facilidade se transformam em chuva.

À noite, quando não está chovendo e o céu não está encoberto de poluição, vemos o universo fora do planeta Terra, a lua, as estrelas, os satélites e outros corpos celestes. As mulheres e os homens, desde as pinturas rupestres, durante toda a história da humanidade e em qualquer lugar desse planeta, sempre projetaram suas diferentes realidades nas céu.

 Quando desenhos imaginários projetados em uma região específica de estrelas no céu se tornam saberes reconhecidos por uma sociedade, a essa região chamamos de constelação. Isso não significa que quando olharmos para o céu, vamos ver exatamente aquele desenho.

Quando pensamos nas constelações do povo indígena Tembé, que vive na Amazônia, no estado do Pará, por exemplo, eles projetam no céu uma constelação denominada de Tapirapé, o Queixo da Anta, no norte celestial, onde o Ocidente vê o Queixo do Touro (Neves, 2009). Esta região do céu se apresenta em formato de um grande “V”. Não é exatamente um queixo, nem da anta nem do Touro, mas a partir de seu formato, várias sociedades projetaram nessa região um queixo.  

A mesma coisa acontece com as constelações ocidentais. Vamos analisar a constelação de Escorpião, uma das mais visíveis no sul celestial. O escorpião é com várias pernas que tem um ferrão na calda, mas quando o identificamos no céu, as estrelas que compõem esta constelação têm o formato de um anzol.

Astronomia Indígena e Decolonialidade

A maioria das pessoas nem imagina que os povos indígenas têm suas próprias constelações. Esse desconhecimento é resultado de um processo longo, que se iniciou com a invasão dos europeus ao continente americano. A colonização invadiu as terras indígenas e se empenhou em inferiorizar e apagar os saberes indígenas.

Hoje, existe todo um esforço acadêmico e dos movimentos indígenas, sobretudo marcado pela presença indígena na universidade, de remexer esses saberes. Felizmente, no momento atual, do ponto de vista humanista, há muito interesse nas reflexões produzidas pelos estudos decoloniais, cuja referência inicial na América Latina remonta ao pesquisador peruano Aníbal Quijano (2005), criador das definições de colonialidade do saber do poder e do ser. Essas reflexões contribuíram bastante para enxergar um pouco melhor o trabalho da colonização que não se encerrou com as independências políticas dos países latino-americanos.

O grupo de Quijano procurou mostrar como os discursos e as práticas estabelecidas pelos colonizadores permanecem atuantes na contemporaneidade, quer seja pelos discursos que sustentam as desigualdades, quer seja pelas práticas de exploração econômica, pelo processo de inferioridade de saberes e pelos domínios do patriarcado.

A reflexão sobre essas questões é muito importante, mas elas precisam sempre avançar. É necessário mostrar os saberes que foram apagados, tomados como inferiores. Apesar da ação implacável do dispositivo colonial, realmente uma força que muitos saberes indígenas de chegasse até nossos dias, como todo dispositivo, ele traz em si sua própria contradição e permite as brechas no discurso. Nenhum poder é absoluto.

Ainda nos primeiros anos na colonização na América Latina um dos saberes indígenas o que mais chamou a atenção foi a maneira como eles interagiam com o céu. Não são poucos os relatos de viajantes que se mostram fascinados com a habilidade indígena de diferentes povos em reconhecer as estrelas, o percurso da luz do Sol na Terra, as fases da Lua a as estações do ano (Neves, 2004). Na maior parte do território brasileiros, existem apenas duas estações, a da seca e a das chuvas.

Outro aspecto significativo presente na grande maioria das cosmologias indígenas é o fato de eles não estabeleciam uma relação com o universo, eles eram o próprio universo (Neves, 2000. Os caminhos da floresta por onde transitavam se estendiam ao céu. De forma geral, os povos indígenas se sentiam e se sentem parte da natureza.

As constelações indígenas e os problemas de tradução

Homens e mulheres indígenas produziram saberes ancestrais sobre o céu. Conheciam e conhecem ainda hoje suas próprias constelações, resultado da observação atenta das estrelas. Mas, os nomes que atribuíam as constelações não podiam ser os mesmos atribuídos pelos europeus. Quando olhamos para o céu com os olhos dos Tupinambá do litoral da Amazônia, vemos a constelação do Urubu, da Garça, da Sururina, da Anta, do Cofo. O que vemos no céu Tupinambá e de todos os povos que vivem na região, como os Tembé, os Assurini, são as referências da Amazônia.

Como os primeiros registros escritos sobre os céus indígenas foram feitos por europeus, eles cometeram uma série de equívocos quando tentaram traduzir os nomes das constelações indígenas. Por exemplo, chamaram de Queixo do Boi a uma constelação o que os Tupinambá chamavam de Queixo da Anta (Neves, 2004). Isso acontecia porque as línguas europeias não tinham palavras específicas para denominar animais que viviam apenas na América Latina.

O mesmo processo também acontece com a constelação da Garça que vai ser chamada de constelação do Avestruz, animal que vive na África. Mais especificamente em relação à Amazônia, um novo problema de tradução se coloca diante de pesquisadores da região sudeste e sul do Brasil, pois vão fazer a tradução de que não é a constelação vou Avestruz e sim da Ema. Acontece que na Amazônia não existe Ema. O mais adequado então é analisar as constelações indígenas a partir da realidade em que viviam ou vivem esses povos.

É muito significativo fazer emergir esses saberes. Saberes que Michel Foucault (1999) chamou de saberes sujeitados que estavam sempre nas margens. Quando pensamos nos céus indígenas, vamos além das reflexões sobre decolonialidade e entramos em contato de fato com outros universos culturais que foram fraturados subalternizados pela colonização, mas que não deixaram de existir.

Jacei Tatá Tupinambá - O Céu Tupinambá

Antes da invasão europeia, por todo litoral desse imenso território que hoje se define como Brasil, viviam os Tupinambá e muitos outros povos tupi, como os Tenetehara, os Guarani. Eram os “Senhores do Litoral”! Na zona costeira da Amazônia, que compreende o Maranhão, o Pará e o Amapá eles estavam presentas e chamavam a esse Território de Mairi, a terra de Maíra.

Como os Tupinambá foram os primeiros indígenas a receber os colonizadores, viveram intensos processos de violência. Um grande número de indígenas morreu no primeiro momento de contato, em função das guerras, mas sobretudo pelas doenças e epidemias trazidas pelo colonizador. Uma parte deles fugiu e adentrou na floresta e um grande número foi incorporado à população das primeiras cidades amazônicas, como Belém e Vigia, no Pará, São Luís, no Maranhão e Macapá, no Amapá.  Atualmente, no estado do Pará, os Tupinambá vivem no Baixo Tapajós, nas proximidades de Santarém.

Os povos indígenas eram profundos conhecedores do céu. Em vários relatos dos primeiros cronistas e religiosos europeus no continente americano, há registros desses saberes.  Mesmo quando consideravam os indígenas de “mentalidade inferior”, reconheciam surpresos a precisão com que identificavam as estrelas, as constelações e diversos fenômenos astronômicos. Suas cosmologias desafiavam e encantavam os olhos europeus.  

Em 1614, o frade capuchinho francês Claude D’Abbeville esteve na região e fez um minucioso registro do céu Tupinambá em sua obra intitulada Histoire de la mission des pères capucins en l’isle de Marignan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables &amp, des moeurs merveilleuses des indiens habitans de ce pais. Graças a ele e aos estudos comparativos de astronomia cultural é possível reconstituir a localização de parte das constelações Tupinambá. Em suas anotações, feitas em francês e na língua Tupinambá, D’Abbeville indicou os nomes e as regiões onde elas estavam situadas no céu ocidental conhecido naquele momento histórico.

 Jacei Tatá, em Tupinambá, significa estrela, por isso escolhemos esse título para a obra de AndSantos aqui exposta.  Jacei Tatá Tupinambá, traduzido para o português, significa O Céu Tupinambá. Na parte central da pintura está o céu verossímil visível em Belém, ao lado esquerdo as constelações do sul celestial e do direito, as do norte celestial. Nas laterais, os registros de estrelas e constelações feitos por D’Abbeville não localizados no céu.  

Na imagem a seguir aparecem as denominações das constelações em Tupinambá e em português.

Arte: AndSantos - Localizada no Hall do primeiro andar do PPGL/UFPA

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