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Mulheres Indígenas na web: cosmologias, protagonismos e diversidades contra a opressão e violência do dispositivo colonial

  • por

Raimundo de Araújo Tocantins
Orientadora: Dra. Ivânia dos Santos Neves
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará

VÍDEO DE APRESENTAÇÃO


Os ativismos visibilizados nesta tese são elaborados por mulheres indígenas de diferentes etnias, ocupam as ruas brasileiras e também os espaços da web. Valdelice Veron, Sonia Guajajara e Joênia Wapichana nos trazem diferentes cosmologias e sensibilidades. Além destas mulheres que compõem o eixo principal da pesquisa, Célia Xacriabá, Márcia Mura, Pietra Dolamita e Tsitsina Juruna também elaboram diálogos e nos ajudam a compreender sobre cosmovisões indígenas. A partir da definição tecida pelos pesquisadores que estudam os povos indígenas do território brasileiro, compreenderemos mais sobre o conceito de cosmologia.
São teorias do mundo. Da ordem do mundo, do movimento no mundo, no espaço e no tempo, no qual a humanidade é apenas um dos muitos personagens em cena. Cosmologias definem o lugar que os humanos ocupam no cenário total e expressam concepções que revelam a interdependência permanente e a reciprocidade constante nas trocas de energias e forças vitais, de conhecimentos, habilidades e capacidades que dão aos personagens a fonte de sua renovação, perpetuação e criatividade. Na vida cotidiana, essas concepções orientam, dão sentido, permitem interpretar acontecimentos e ponderar decisões. São expressas através da linguagem simbólica da dramaturgia dos rituais. Música, ornamentos corporais, entre outros recursos, permitem o contato com outras dimensões cósmicas, com momentos outros do mundo e do processo da vida (e da morte). (SÓCIO AMBIENTAL, 2019)
Ao olharmos o universo com as lentes das cosmovisões dos povos indígenas da Amazônia, podemos questionar sobre o que nos foi e ainda nos é “ensinado” sobre humanidade, as relações com a natureza e com outras formas de compreender o universo que nos acolhe entram em choque com a lógica do pensamento colonial, que historicamente tem hierarquizado e subalternizado as relações com os povos e saberes de suas antigas colônias. Nossa compreensão colonizada sobre o universo, elege como forma de conhecimento aquela de base europeia, exclui diálogos com outras culturas e invisibiliza saberes. Por outro lado, o ativismo de mulheres indígenas, em sua pluralidade de expressões, além de reivindicar direitos, se oferece como um canal para a descolonização do pensamento colonial.

A compreensão sobre o dispositivo colonial explica como a implantação de um complexo conjunto de “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos” (FOUCAULT, 2007, 244) historicamente tem direcionado nosso olhar para uma produção de saber que estabelece estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1999, p. 146). Dessa forma, o dispositivo orienta a forma como olhamos para as concepções cosmológicas dos povos originários, ou até mesmo para não olharmos em direção a esses saberes.
Perspectivas teórico-metodológicas
O Grupo de Estudos Mediação, Discursos e Sociedades Amazônicas (GEDAI) em suas pesquisas e projetos conscientes em investigar a produção de subjetividades e sempre afinado com a visada de Michel Foucault, com o avançar de sua caminhada empreendida em torno dos estudos do discurso, volta seu olhar investigativo para debates em torno da relação saber-poder, problematizando a suposta hegemonia e universalidade do conhecimento científico de matriz ocidental, que ao expor sua epistemologia,  determina o apagamento e exclusão da pluralidade de experiências sociais e culturais produzida historicamente por povos subalternizados pela experiência colonial. Nessa direção, os conflitos e oposições entre os saberes, característica do método foucaultiano conhecido como genealógico, passam a fazer parte do arranjo metodológico das reflexões acadêmicas do grupo.

O gesto de fazer pesquisa conectado às perspectivas do GEDAI, torna sensível e urgente a ampliação do olhar teórico-metodológico, o que não implica em propor uma fratura nessa passagem. Ou seja, o novo paradigma não estabelece rompimento ou abandono dos temas da arqueologia e de seus conceitos caros para estas análises como rede de memória, enunciado e história descontínua, pelo contrário, há uma complementaridade. O empreendimento metodológico em uma tese que analisa a produção discursiva de mulheres indígenas na web, requer a habilidade em estabelecer a arqueologia como categoria de análise e a importância da materialidade dos enunciados enquanto produção humana fundamental para o exame dos discursos. Nessa via, valer-se do amadurecimento do grupo de pesquisa, significa trazer para esse trabalho a irrupção de um Michel Foucault dos dispositivos, da governamentalidade, das preocupações do filósofo com população, dispositivos de poder e de saber que materializam suas existências na obra “Em Defesa da Sociedade”.

A reflexão genealógica empreendida por Michel Foucault aponta para os dispositivos e seus objetivos de controle da população a partir de “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 1999, p. 146). A implantação desta lógica é refletida no mundo colonizado por meio do “conflito entre povos, cujo cérebro e pele foram formados por diferentes memórias, sensibilidades e crenças” (MIGNOLO, 2003, p. 41).

O objetivo geral dessa pesquisa é analisar o “novo perfil” indígena divulgado através da circulação de imagens e projetos étnico-políticos para um grande público. As mulheres dos povos indígenas, ao se utilizarem dos meios de comunicação, ao mesmo tempo que realizam intercâmbios diversos e criam redes em diferentes escalas, demonstram a diversidade de vozes, situações e experiências indígenas contemporâneas. Além disso, a pesquisa observa de maneira específica as formas de opressão e violência promovidas pelos efeitos da colonização que historicamente atravessam suas vidas.

Ao visitarmos os movimentos feministas, em busca de possíveis diálogos com a realidade de indígenas brasileiras, nos deparamos com sua primeira irrupção e suas perspectivas liberais. Oliveira (2014) nos ajuda a compreender, que a categoria “mulher”, neste momento era compreendida a partir do pensamento da diferença sexual, no âmbito da representação hegemônica. Este autor também nos esclarece, em outro momento, o pós-guerra, outras inquietações e abrangências que seriam incluídas.

Ao avançarmos no universo dos feminismos, descobrimos suas pluralidades e outras formas que representam necessidades diversas. Em relação às mulheres indígenas, é importante tornar-se consciente de que não há como generalizar sua compreensão, pois há em território nacional diferenças de ordens étnicas e culturais que as peculiarizam, da mesma maneira que há também aproximações.
Mulheres indígenas entre feminismos
Em Nossa pesquisa, compreendemos a violência contra mulheres indígenas como consequência da colonialidade do poder e de seu desdobramento em uma colonialidade de gênero imposta pelo dispositivo colonial.
Quando aqui chegaram os invasores no ano de 1500 com suas caravelas e doenças, éramos milhões vivíamos outro modo de nos relacionar com o mundo. Hoje, 519 anos após, ainda não nos exterminaram, resistimos e lutamos de todas formas possíveis que alguém pode lutar contra a colonização e a dor que isso causou aos nossos corpos e espíritos. Muitos povos morreram. Chamaram-nos de índio, mas não somos índio, somos povos, denominados pela nossa etnia. Somos povos originários. (DOLAMITA, 2019, P. 11).
Os herdeiros e herdeiras dos povos originários que habitavam as colônias de exploração localizadas no que hoje chamamos América Latina, atualmente, desenvolvem formas organizadas de combate à opressão e violência de seus corpos, territórios e culturas. Isto pode ser constatado nas atividades ativistas elaboradas por mulheres indígenas nos espaços da internet.


Para analisarmos os discursos elaborados por mulheres indígenas, torna-se necessário compreendermos o que aqui chamamos de enunciado. As postagens destas mulheres na web são compreendidas como enunciados, consequentemente, portadores de discursos que são caros à nossas análises. O enunciado, na análise arqueológica de Foucault, não é exclusivamente linguístico, ele também assume nas palavras de Gregolin (2011), uma natureza semiológica. Esta concepção de enunciado amplia nossa perspectiva analítica e coloca as postagens realizadas por mulheres indígenas na internet na galeria que Foucault (2005) elencou como enunciados que não correspondem à estrutura linguística das frases.

O enunciado produzido por Sonia Guajajara em sua página no Facebook, mostra formas de diálogo entre uma grande representatividade indígena e outras mulheres não indígenas. Guajajara, relata sua participação no que ela nomeia como “roda de conversa feminista”. A ativista aborda sobre a importância de mulheres ocuparem os espaços políticos e também expõe sua preocupação com a demarcação territorial, não só para os indígenas, mas também para as comunidades quilombolas.

                                                                                  Figura 2

Outro ponto para observação encontra-se na confluência entre mulheres e terra, ambas compreendidas como reprodutoras da vida. Nesse sentido, Sonia manifesta neste encontro feminista sua preocupação para o perigo da produção alimentícia do agronegócio. Incentivada pelo Estado, esta forma de produção de alimentos em larga escala, executada pelas grandes corporações, impõe a monocultura, devastando grandes áreas de mata nativa e outras formas de biodiversidade. Além disso, o uso de pesticidas químicos, chamados de “venenos”, empobrecem o solo e contaminam de forma letal os alimentos, ocasionando graves problemas de saúde aos consumidores destes alimentos. Sonia Guajajara leva para a “roda de conversa feminista” preocupações relacionadas aos territórios, suas formas de ocupação e produção que, geralmente não fazem parte dos debates feministas não-indígenas, todavia fazem parte das cosmovisões indígenas que compreendem mulheres e os cuidados com o território e a vida.

O elo que Sonia realiza neste encontro faz relação com as ideias do Ecofeminismo de VandanaShiva, e a confluência apresentada por esta autora: poder, mercado, capitalismo e violência. Guajajara leva para a discussão o conceito cosmológico de “que a natureza não só está viva, mas também é a base de toda a vida e que somos parte dela”.

           A postagem realizada por Márcia Mura na rede Facebook, traz um ato de mulheres indígenas na Praça da República em São Paulo. O enunciado verbal expõe o seu posicionamento em relação ao feminismo de matriz europeia. Nele, a indígena afirma: “Nosso feminismo não é ocidental”. Mura dialoga com a ideia de que esta forma de feminismo não alcançou os setores populares ou empobrecidos e, menos ainda os territórios e vidas indígenas.


O enunciado visual apresenta a participação das mulheres indígenas empunhando uma faixa de tecido amarela, onde se destaca “Feminismo Comunitário”, ao lado o símbolo do gênero feminino, seguido das palavras “Abya Yala”. Esta expressão na língua do povo Kuna, originário da Serra Nevada, norte da Colômbia, estabelece sentidos como “terra madura”, “terra viva” ou “terra em florescimento”, sendo utilizada desde o século XVI. Seu uso somente se consagraria a partir do final do século XVIII e início do século XIX, como símbolo de afirmação dos povos desta região no processo de independência fazendo um contraponto aos conquistadores europeus.

O feminismo comunitário surge como uma proposta que pode se aliar às lutas ativistas de mulheres indígenas brasileiras, pois ele fala de lugares como humilhação, opressão, exploração das populações, ruína de recursos naturais e as sucessivas apropriações das terras indígenas que somente os próprios indígenas podem falar. Além disso, a compreensão da lógica patriarcal, como historicamente responsável pelas mazelas dos povos originários aparece como um ponto de afinidades entre essas histórias de vidas de mulheres subalternizadas.

O posicionamento de Dolamita (2019) não desconsidera as lutas dos diversos movimentos feministas, pelo contrário, esta ativista entre outras mulheres indígenas, reconhece a validade das lutas dos movimentos de mulheres, todavia, ela aponta para os diferentes caminhos, definições, necessidades e realidades heterogêneas quando se pensa “mulheres indígenas”. Nessa direção ela adverte que o uso de um conceito de origem ocidental, como o feminismo, por parte das indígenas, poderia ser compreendido como uma forma continuada do processo de colonização, pois, “a pauta feminista, não contemplou as mulheres indígenas” (DOLAMITA, 2019, p. 18).

Sonia Guajajara, Valdelice Veron, Joênia Wapichana, Marize Oliveira, Márcia Mura e Pietra Dolamita, mulheres de diferentes etnias, aqui reunidas a partir de suas materialidades enunciativas na web, nos apresentam perspectivas sobre a organização em rede protagonizadas por elas. Nesta perspectiva, percebemos que compreender esta organização sob a alcunha de “feminismo”, mesmo com orientação indígena, consiste em implantar para a realidade destas mulheres, uma teoria de origem ocidental que não abarca as especificidades de mulheres e realidade tão plurais.
Referências
DOLAMITA, P. KUAWÁ KAPUKAY APURINÃ. (Entrevista).  Revista Diversidade e Educação, v.7, n. especial, p.11-20. 2019.
____________. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Petrópolis. Editora Vozes, 1999.
____________. A arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
_____________. A Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2007.
GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e semiologia: enfrentando discursividades
contemporâneas. In PIOVEZANI, C; CURCINO, L; SARGENTINI, V. Discurso,
semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011.
_______________. O que quer, o que pode esta língua?Teorias linguísticas, ensino de língua e relevância social. In: FARACO, C.A. et al. A relevância social da Linguística. São Paulo: Parábola, 2006.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. O que são cosmologias. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Mitos_e_cosmologia. Acesso em: 15 fev. 2019.
LISBÔA, F. Língua como linha de força do dispositivo colonial: os Gavião entre a aldeia e a cidade. Belém, PA: 2019.
MIGNOLO, Walter. Histórias Locais / Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
NEVES, I. A invenção do índio e as narrativas orais Tupi.Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2009.
NEVES, I. As histórias de Murué Suruí e Kudã’í Tembé: traduções e temporalidades. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 53, p. 149-175. 2018.
OLIVEIRA, M. A necropolítica e as sombras na teoria feminista. exæquo, n.º 29, 2014.
PAREDES, J. Hilando Fino. Desde el feminismo comunitário. La Paz: Diseño Editorial, 2010.

Raimundo de Araújo Tocantins é bolsista CAPES, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-UFPA), membro do Grupo de Estudo Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas (GEDAI/UFPA-CAPES). Currículo Lattes. 

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