Yuri Araujo de Mello
Orientadora: Dra. Rosário Gregolin
Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa – Unesp Araraquara
VÍDEO DE APRESENTAÇÃO
No ano de 2011, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, o Congresso Nacional decreta e presidenta da república Dilma Roussef sanciona a Lei 12.528 que dá origem à Comissão Nacional da Verdade[1]. Formado por sujeitos com notório saber, o grupo busca de examinar e esclarecer as graves violações no período ditatorial brasileiro com a finalidade de efetivar o direito à memória e à verdade até então veladas, com o fim de garantir a “reconciliação nacional”.
Nesse sentido, partindo do campo teórico e metodológico da Análise do Discurso de linha francesa, mais especificamente a que se baseia nos trabalhos de Michel Foucault em diálogo com outros autores, o presente trabalho de doutoramento possui por finalidade observar o funcionamento de uma política de memória na construção de subjetividades contemporâneas.
Para tanto, toma-se como corpus de análise materialidades audiovisuais produzidas pela CNV que tematizam a Casa da Morte de Petrópolis-RJ, veiculadas pelo canal Comissão Nacional da Verdade, na plataforma do YouTube[2], e os comentários realizados a estas materialidades. Dispostos à lâmina de análise do discurso tanto a produção quanto a recepção de uma dada memória permitem-nos inferir que o jogo político e estratégico presente nas práticas discursivas arquitetadas em torno da memória sobre a ditadura militar brasileira, em que as enunciações dos sujeitos inscritos nesses lugares fazem circular de maneira microfísica esse objeto de desejo, fato que evidencia que a “[…] memória coletiva não é apenas uma conquista: é também um instrumento e um objetivo de poder […] pelo domínio da recordação e da tradição, esta manipulação da memória” (Le Goff, 2000, p. 57).
“[…] Começa na noite de 30 de março de 1964, quando a democracia brasileira tomou o caminho da breca […]” (GASPARI, 2002, p. 41)
“O Comandante Militar do Norte, General de Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, tem a honra de convidar V. Exa / V. Sa para a solenidade alusiva aos 55 anos da Revolução Democrática de 31 de março de 1964”[3]
Presente através da história nas sociedades humanas – que remonta inclusive ao berço da civilização ocidental – e desencadeadora de numerosas e heterogêneas reflexões a partir de diferentes perspectivas do ramo científico, como uma “enzima científica” que abre a chave do pensamento crítico, a memória envolve-se de complexas problemáticas e contraditórias opacidades e ostentações na espessura da contemporaneidade, em contínuo e contingente processo de existência, desistência, resistência. Assevera Jacques Le Goff (2000, p. 9-10) que “[…] o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação dos percursos, mas também o modo de o interpretar […]”, uma cartografia do e para o presente.
Entretanto, observa-se que na emergência de certos objetos inscritos na espessura do acontecimento, observa-se certas contraditoriedades e obscuridades, como o período que compreende a Ditadura Militar Brasileira, referenciada por Elio Gaspari, como a suspensão dos direitos democráticos brasileiros e por um convite de comemoração do mesmo período, aludida como “revolução democrática”, assim, “[…] por vezes o monumento comemorativo não possui inscrições e seu significado permanece obscuro […]” (Le Goff, 2000, p. 17).
Observar a história, do ponto de vista da Análise do Discurso de linha francesa tomar os objetos de análise não como materialidades estáticas, passível apenas à contemplação, mas são materialidades móveis, dinâmicas, próprias às (re)produções e transformações históricas, que exige um olhar que captura as descontinuidades tanto das sucessões quanto das simultaneidades. Contrapõe-se, assim, à história tradicional, das ordenações progressivas, hierarquizadas e teleológicas. Concebida pela ótica da Análise do Discurso, a nova história é vista como prática e/ de discurso, ou seja, reflete-se sobre os modos de produção, circulação de discursos e seus efeitos de sentidos versados na construção de subjetividades e funcionamento da memória.
A concepção de Nova História traz novas abordagens e procedimentos metodológicos diferentes de teorias históricas tradicionais. Oriundas das reflexões francesas desenvolvidas pela École des Annales, a história é continuamente (re)construída pelas estratégias que envolvem as práticas do sujeito na atualidade. Para além de uma visada teórica, ela é, sobretudo, política, uma política histórica do presente. Assim, retornar à história brasileira, hoje, faz-se imperativo e urgente, como afirma Gregolin (2006, p. 191): “[…] olhar a História é, mais do que nunca, necessário hoje, principalmente no Brasil, onde predomina uma circulação desenfreada de conceitos cuja origem perdeu-se nas brumas das replicações. Isso traz como efeito um “esquecimento” […]”. É no entremeio do esquecimento e da memória em que são reatualizados acontecimentos discursivos, os discursos atualizam-se em outro(s), como cada nova linha costurada a uma malha densa de dizeres dispersos, mas que produzem trajetórias de sentidos possibilitados pelas condições de emergência no terreno da história.
Nesta perspectiva, no dia 18 de novembro de 2011 – durante do então governo da ex-presidenta Dilma Roussef – foi sancionada a Lei 12.528 cria, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade (também chamada de CNV, simplesmente). Esta comissão, constituída por um corpo de sete membros: José Carlos Dias (ex-ministro da justiça), Gilson Dipp (ministro do STJ), Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada), Cláudio Fonteles (ex-procurador geral da república), Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista)[4]. A CNV tem a finalidade é realizar um exame e aclarações das graves violações de direitos humanos praticadas durante os mais de quarenta anos que marcaram o período autoritário de nossa história recente (período demarcado entre 1946-1988), com a máxima de efetivar o direito à memória e à verdade histórica para promover uma reconciliação nacional, visando, entretanto, a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, mais conhecida como Lei da Anistia, assim, não é conferida à CNV nenhum poder de punição judiciária.
O trabalho realizado pela Comissão Nacional da Verdade tematiza sobre uma extensa diversidade de temas, assim, para a feitura do presente trabalho, selecionamos como corpus as materialidades audiovisuais produzidas e veiculadas na plataforma do YouTube que tematizam Casa da Morte de Petrópolis-RJ, local popularmente conhecido por ser utilizado como um meio clandestino de tortura durante o período de Ditadura Militar. Das práticas de violação aos direitos humanos realizados neste local, a única vítima que escapou com vida e que também serviu como “peça” na construção do “quebra-cabeça” da memória foi Inês Etienne Romeu. Por meio das práticas de inquérito, em que se realizam perguntas dirigidas, diligências fotográficas e um conjunto de ações e estratégias na observação e verificação de verdades. Tanto os procedimentos de sindicância quanto os produtos do trabalho por meio de audiências públicas são veiculados no canal do YouTube, ou seja, esta memória é recepcionada e “comentada”, mobilizam-se outras memórias, outros discursos e outras verdades, a memória entra nas malhas do poder.
A partir das relações estratégicas do poder arquitetadas horizontalmente, em consonância com as vontades de verdade de determinadas épocas, período teórico foucaultiano chamado pelos especialistas de Genealogia do Poder (Gregolin, 2006), resvala na agenda do analista do discurso a compreensão da gestão do sujeito na contemporaneidade, sua governamentalidade, sua formação.
Na interpretação genealógica, Michel Foucault (2014, p. 223) elenca três possíveis domínios de genealogias:
a) Ontologia histórica de si: busca observa os movimentos históricos de subjetivação por meio das relações que se estabelecem entre o sujeito e a verdade, pois “[…] a obrigação de conhecermos nós mesmos a verdade, mas também de contá-la, mostrá-la e reconhecê-la como verídica […]” (FOUCAULT, 2014, p. 241);
b) Sujeito de poder: o sujeito é visto a partir de uma inscrição formada pelos desdobramentos históricos em suas relações dentro de um campo de poder, constituído, assim, pela ação belicosa que os sujeitos estabelecem uns sobre os outros;
c) Sujeito de moral: são os processamentos históricos das relações do sujeito com a moral que permite a construção do sujeito como um ser e, principalmente, como um agente ético, pois além das regras e dos códigos de conduta com os sujeitos, tais injunções servem para a relação do sujeito o outro e com ele mesmo, intermediadas pela relação do sujeito com a verdade.
A memória, assim, faz-se presente nas práticas discursivas, nas enunciações dos sujeitos inscritos nos discursos, a partir de um já-dito, da anterioridade e exterioridade do dizer. Esse já lá, precedente ao funcionamento da memória, aparece na experiência brasileira como um talvez lá, um a descobrir. Esta “[…] memória coletiva não é apenas uma conquista: é também um instrumento e um objetivo de poder […] pelo domínio da recordação e da tradição, esta manipulação da memória” (Le Goff, 2000, p. 57) que viabiliza a relação entre o sujeito e a verdade.
Refletir sobre a temática da verdade não é uma tarefa simples e trivial. É possível observar que as tentativas de delineá-la por linhas conceituais são presentes desde a sociedade que se convencionou a ser chamada como berço da civilização ocidental, com os pensadores gregos, à sociedade contemporânea, período que inscreve nossa atualidade enquanto sujeitos. Só pela exposição dessa linha temporal de longuíssima duração, a verdadepermaneceu e permanece presente e imperativa, pois:
[…] estamos submetidos à verdade também no sentido de que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder. Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder […] (FOUCAULT, 2013, p. 279, grifo nosso).
Quando ressalta o argumento de que a verdade não é um objeto apreendido pelo sujeito, ou seja, o sujeito não a pode deter nem a possuir, mas o contrário, ela que estabelece os controles e regras aos quais o sujeito é “convidado” a se submeter. Foucault, então, distância dos sujeitos certos privilégios de exclusividade da verdade, detentor da verdade. Há verdade é retirada dessa correnteza límpida, tranquila, em que navega curso é previsível para ser diluída nas profundezas das opacidades da produção histórica, levadas pelos cursos caudalosos do discurso, encharcada pelos jogos estratégicos, tornada, pois, verdades. E são nesses inevitáveis mares turbulentos contemporâneos que os sujeitos devem nadar – sem praias à vista.
Dessa multiplicidade de verdades, ou melhor, efeitos de verdades, há de se considerar que os sujeitos também não são inteiramente passivos, eles podem se ligar a determinadas verdades a partir do momento que eles acreditam nelas. Dessa maneira, é possível argumentar que existe um crivo da verdade.
A verdade, assim, ela é crivada, furada em muitos pontos por certos enunciados para que possa passar por uma “peneira”, objeto constituído por fios resistentes, em que se pode esmigalhar, passando a um sistema de separação dos fragmentos de rochas sem valor das “pedras preciosas”, valoradas e, sobretudo, críveis. A credibilidade desses objetos permite com que os sujeitos acreditem em seu valor, tornando-os objetos de desejo. E nessa relação de sujeito com a verdade produziria, também, subjetividades:
O problema da produção histórica das subjetividades pertence, portanto, ao mesmo tempo, à descrição arqueológica da constituição de um certo número de saberes sobre o sujeito, à descrição genealógica das práticas de dominação e das estratégias de governo às quais se pode submeter os indivíduos, e à análise das técnicas por meio das quais os homens, trabalhando a relação que os liga a si mesmos, se produzem e se transformam […] (REVEL, 2005, p. 85).
[3] Convite divulgado em matéria pelo site Fórum no dia 27 de março de 2019, às 20h 06. Acesso 06 de abril de 2019. Endereço eletrônico: https://revistaforum.com.br/politica/generais-contrariam-mpf-e-fazem-convite-para-comemoracoes-do-golpe-de-64/
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o surgimento dos computadores eletrônicos e informacionais no século XX, capazes de armazenarem uma grande quantidade de informações e acessar a memória de maneira absurdamente rápida devido a agilidade e precisão dos cálculos da máquina, os desenrolares da história contemporânea, com a inserção desses objetos tecnológicos no cenário social, desencadeou uma grandiosa revolução documental em que se ambientou a memória coletiva (e individual). Toda revolução causa desestabilizações, deslocamentos, modificações. Novas perspectivas são colocadas à mesa. Porém, nenhuma “revolução” é possível sem que haja ferramentas (físicas e/ ou simbólicas). Nesta, a ferramenta foi o surgimento do banco de dados, que pode ser entendido como uma coleção de dados que se inter-relacionam, agrupados sobre um determinado domínio de informações, organizados e selecionados, quando necessário.
A memória, que antes era vista como uma espécie de memória sedimentar, em que as materialidades da história eram colocadas uma sobre a outra devido a capacidade física do homem na conservação de informações, em especial em sociedades de tradição oral. Já com o surgimento da escrita, que garantiu condições de produção de objetos que viriam posteriormente, e com o surgimento do banco de dados, as materialidades histórias que formam a memória passaram a ser colocadas lado a lado, em que cada elemento constitui uma redemanuseável e monumental.
Dessa maneira, se essa grande massa de informações e enunciados que formam a memória pode ser tocada, realocada e, até mesmo, metamorfoseada por sujeitos, essas ações constituem o que poderia se chamar política de memória, em que os saberes e os poderes são tensivos.
REFERÊNCIAS
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_____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
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_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Forense Universitária, 2008.
GASPARI, E. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GOFF, J. História e memória. Lisboa: Edições 70, 2000.
GREGOLIN, M. R. (org.). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.
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_____. AD: descrever-interpretar acontecimentos cuja materialidade funde linguagem e história. In: NAVARRO, P. (Org.). Estudos do Texto e do discurso. Mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006, p. 19-34.
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_____.O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.
NOVAIS, F. A. & SILVA, R. F (org.). Nova história em perspectiva volume 1. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
SOUSA, K. M. & PAIXÃO, H. P. (org.) Dispositivos de poder/saber em Michel Foucault: biopolítica, corpo e subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2015.
Yuri Araujo de Mello é doutorando em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp Araraquara. Possui mestrado em Linguística e Língua
Portuguesa, bacharelado e licenciatura em Letras (Português, Francês e Literaturas) pela mesma instituição. Tem experiência como pesquisador na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso e Mídias. Currículo Lattes.