O autor do Odivelismo produziu quatro obras sobre ancestralidade indígena
O prédio que abriga o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará (PPGL/UFPA), também se configura agora em um espaço onde pulsa a ancestralidade indígena. Os murais externos Manto Tupinambá e Território Mairi, a já inaugurada Sala Verônica Tembé, no térreo, e o mural Jacei Tatá Tupinambá (Céu Tupinambá), no primeiro andar do PPGL, foram pintados, ao longo do primeiro semestre, pelo artista paraense And Santtos. A inauguração dos murais ocorrerá no próximo dia 30, às 16h.
Para a coordenadora do PPGL e do Grupo de Estudo Mediações, Discursos e Sociedades Amazônicas (GEDAI), Ivânia dos Santos Neves, é uma oportunidade de pluralizar ainda mais a universidade, que há bem pouco tempo, com o início da política de cotas, possibilitou a entrada de indígenas. “Aqui no PPGL a presença indígena é visibilizada de forma múltipla, tanto politica como esteticamente. Das nossas linhas de pesquisa às nossas paredes, temos compromisso com os povos indígenas da Amazônia. Para nós, é uma felicidade trazer a ancestralidade indígena, por meio da arte, no espaço da Universidade, onde há pouco tempo não se falava sobre práticas culturais e saberes dos povos originários. No PPGL só em 2020 estabelecemos as cotas, a presença das nossas doutorandas indígenas, Márcia Kambeba e Jucicleide Pereira (Whapichana), nos abre a oportunidade para pensar sobre a presença dos saberes indígenas dentro da nossa universidade”, avalia.
And Santtos e o Odivelismo
O artista visual And Santtos é autodidata, nascido no município de São Caetano de Odivelas, no Pará. Teve sua infância à beira do Mojuim, rio que banha sua cidade natal, onde passou maior parte de sua adolescência produzindo, abrindo letras em canoas e barcos. Mas iniciou seu interesse pela arte, quando começou a usar as trinchas, sprays, tintas e pincéis, em telas, painéis, fachadas de comércios, barcos de pesca, cenários e muros urbanos, identificando suas próprias técnicas e linguagem.
And Santtos
O estilo poético e colorido de seus painéis e telas que retratam de maneira original o imaginário popular, o levou a criar o Odivelismo, trabalho de pesquisa, onde lança um olhar sobre os sujeitos e sujeitas amazônicos, a partir da ancestralidade indígena. Dentro da produção artística, o Odivelismo apresenta a linguagem totalmente livre de pensamentos e espontâneo, com uma rica composição de cores e elementos regionais. A inspiração está associada às raízes e ao cotidiano do artista que faz referência ao “Boi de máscaras”, tradicional manifestação cultural da cidade de São Caetano de Odivelas, cidade litorânea, tendo a sua economia voltada à pesca e a extração de caranguejo. Dentre toda a produção e pesquisas, nota-se a universalidade do olhar crítico e poético entre os elementos usados, remetendo-se a vida das sujeitas e sujeitos que vivem nessa região.
O artista fala sobre a emoção de inaugurar suas obras dentro da Universidade. “É emocionante trazer este trabalho sobre algo que não falávamos muito há algum tempo, as nossas raízes, a nossa ancestralidade. E pra mim, quanto artista, fui contemplado em fazer esse Manto Tupinambá aqui no prédio do PPGL, através de uma pesquisa da professora Ivânia, e ela me colocou nesse universo, no qual eu ainda não tinha me auto reconhecido. Se a gente está hoje aqui, contemplando tudo isso, através de um coletivo, de uma somatória é porque nós reconhecemos realmente esse território como Mairi. E esse território é nosso, a preservação tem que partir daqui e não de fora, nós temos sim que fazer a nossa voz enquanto preservação, em todos os sentidos, ambiental, cultural, social, em todos os patamares”, afirma And Santtos.
Território Mairi
Mairi era a denominação indígena para a região constituída hoje pelos estados do Pará, Maranhão, Amapá e Amazonas antes da invasão europeia. O enunciado Mairi é indígena, do Tupi antigo, trata-se do local onde viviam os filhos de Maíra, principal ancestral Tupinambá. Para muitos povos indígenas, o sagrado estava e está relacionado a Maíra, ancestral responsável pela criação de rios, floresta, homens, mulheres e todo o tipo de saberes.
Murais Manto Tupinambá e Território Mairi
“No brasiliano e nheengatu davam a cidade de Belém do Pará o nome de Mairy” (Frederico Edelweiss)
“Mairi: É o nome que os indígenas do rio Negro, principalmente, davam a Belém, capital do Estado do Pará, durante o regime colonial” (Nunes Pereira)
Ainda que registros como estes citados existam, o enunciado Mairi foi silenciado a partir de seu primeiro registro escrito, feito pelo frade franciscano francês André Thevet, no livro “A Cosmografia Universal de André Thevet – cosmógrafo do rei”, publicado em 1575, após a sua viagem ao Brasil entre novembro de 1555 e janeiro de 1556.
Este livro é um marco nos registros de viajantes que vieram ao Brasil, pois apresenta ricos detalhes de práticas culturais e crenças das sociedades indígenas, entre elas, a narrativa do ancestral dos Tupinambá, Monan, que até então não tinha sido registrada por nenhum colonizador. Theveth descreveu o que seria o primeiro ancestral Tupinambá, o grande Monan, “que teria as mesmas atribuições que a Deus” e uma linhagem de “heróis civilizadores”: Monan; Irin-magé = Maire-Monan; Sommay – Sumé – filho de Mair-munhã; Maire-pochy e seus descendentes.
Porém, este mesmo autor é o responsável pelo processo de silenciamento do enunciado Maire, ao afirmar que o significado vem do francês. Theveth incluiu o francês na narrativa, afirmando Mairi ser “o lugar do francês”. Desde a publicação de Theveth (1557), os enunciados Maire, Mairi, Mairi-Monan, Maíra e todos os outros referentes à ancestralidade indígena tupi vem sendo silenciados. Se em alguns verbetes ou dicionários, os autores fazem a designação, mesmo que incorreta dos enunciados, em outros, sequer existe o registro de tais enunciados. Outros enunciados indígenas também são silenciados nesta tradução que seguiu o molde do sistema colonizador, cristão e europeu.
Ivânia Neves sobre a pesquisa feita sobre o tema. “Desde 2019 a gente vem falando de Mairi, com pesquisa, publicação de artigos, documentários, apresentações artísticas, realização de eventos que possibilitem conhecermos mais detalhes sobre a nossa ancestralidade indígena. Recentemente, durante a realização da SBPC na UFPA, o GEDAI apresentou a roda de conversa ‘Mairi e o Manto Tupinambá: a ancestralidade indígena em Belém’, no mesmo evento havia uma tenda chamada “Mairi”, nós já tivemos projetos da prefeitura intitulados “Mairi”, e agora temos o ‘Território Mairi’ na parede externa do nosso prédio”, enfatiza Ivânia Neves.
Manto Tupinambá
O Assojaba Tupinambá (Manto Tupinambá) é uma vestimenta sagrada, utilizada em rituais e composta por penas de aves nativas como o Guará. A preservação do território e de sua natureza garante que a colheita das penas seja feita de forma respeitosa e também protege a vida que flui no Manto.
A indumentária emplumada representa para o povo Tupinambá uma confluência entre a dimensão espiritual (os Encantados e os antepassados), o meio ambiente, a economia e a agroecologia e a transmissão de saberes. Para além do notável significado histórico, o Manto também traz em si uma imensurável importância para o contexto presente, a partir de sua forte presença identitária que garante a permanência da cultura, memória e cosmologia do povo Tupinambá a cada geração. O Manto expressa o protagonismo indígena em suas produções, rituais e tradições.
Os pássaros, assim como outros animais, eram sagrados que poderiam encarnar a força dos seres encantados. Ao usar o manto de plumas, um xamã invocava forças poderosas para intermediar o mundo dos vivos e dos mortos. Para os mantos, usava-se as penas do Guará. O Guará é uma ave típica do litoral atlântico da América do Sul, com plumagem predominantemente vermelha. A cor é devido à alimentação à base de um caranguejo que possui grande quantidade de betacaroteno. Penas de araracanga ou arara vermelha também eram utilizadas aproveitando-se não somente as penas vermelhas, mas também as azuis, verdes e amarelas para compor o manto.
A pesquisa desenvolvida pela professora Ivânia Neves sobre o território Mairi foi base para manifestações culturais do Círio de Nazaré de 2023. Os cortejos culturais Auto do Círio e Arrastão do Círio, fizeram referência ao território Mairi e ao Manto Tupinambá, com apresentações artísticas, que culminaram com uma encenação da subida do Manto Tupinambá ao céu. As poucas unidades do Manto que ainda existem hoje estão em grande maioria em museus europeus. Mas em julho de 2024 retornou o primeiro Manto Tupinambá para o Brasil, devolvido pela Dinamarca.
Jacei Tatá Tupinambá – O Céu Tupinambá
Os povos indígenas eram profundos conhecedores do céu. Em vários relatos dos primeiros cronistas e religiosos europeus no continente americano, há registros desses saberes. Mesmo quando consideravam os indígenas de “mentalidade inferior”, reconheciam surpresos a precisão com que identificavam as estrelas, as constelações e diversos fenômenos astronômicos. Suas cosmologias desafiavam e encantavam os olhos europeus.
Jacei Tatá Tupinambá – Céu Tupinambá
Em 1614, o frade capuchinho francês Claude D’Abbeville esteve na região e fez um minucioso registro do céu Tupinambá em sua obra intitulada Histoire de la mission des pères capucins en l’isle de Marignan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables &, des moeurs merveilleuses des indiens habitans de ce pais. Graças a ele e aos estudos comparativos de astronomia cultural é possível reconstituir a localização de parte das constelações Tupinambá. Em suas anotações, feitas em francês e na língua Tupinambá, D’Abbeville indicou os nomes e as regiões onde elas estavam situadas no céu ocidental conhecido naquele momento histórico.
“Jacei Tatá, em Tupinambá, significa estrela, por isso escolhemos esse título para a obra de And Santtos aqui exposta. Jacei Tatá Tupinambá, traduzido para o português, significa O Céu Tupinambá. Na parte central da pintura está o céu verossímil visível em Belém, ao lado esquerdo as constelações do sul celestial e do direito, as do norte celestial. Nas laterais, os registros de estrelas e constelações feitos por D’Abbeville não localizados no céu”, explica Ivânia Neves.